Por Ezequiel Sena
Lamentável. O maior espetáculo da terra não mais existe em Vitória da Conquista, ainda assim não me custa recordar que aqui já produzimos o mais belo carnaval do interior do país. É verdade, mesmo durante a rigidez da ditadura militar (1968 a 1985), a aclamada festa da carne fez história em nossa cidade. Despertou nos homens o imaginário romanesco de confetes, máscaras e serpentinas, induzindo-os a se fantasiarem de mulher, os pobres a se trajarem de ricos, brancos de negros unificando as pessoas a um único patamar social. Nesse colorido de brincadeiras aflorava o desejo de liberdade aos moldes de risos e pulos da mais autêntica alegria.
Já em meados de 70 a 80, além da incomparável ‘Gabiraba’ que emergia entre as ruas D. Pedro II e Sete de Setembro – o trecho mais libertino do percurso – seguia para a Praça Barão do Rio Branco fazendo ouvir seus triângulos, chocalhos, tambores, atabaques, pandeiros, violão e a sanfona no compasso da marchinha que lhe emprestara o nome ‘Quebra, quebra, gabiraba’, a animação chegava ao seu esplendor com a tradicional lavagem do beco pelos grupos afros e a aproximação dos blocos carnavalescos Apaches, Snobs, Massicas, Zero Camelo (este idealizado dentro do Aerobar), Secos & Molhados, Tengo-Tengo, Executivos, Ticronays, Blokafé, Blokagá, Gula e tantos outros, se unindo aos grupos afoxés e escolas de samba Unidos da Corrente, Alto da Serra, como também a algum desgarrado folião que surgia dando um toque momesco ao espetáculo.
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A agitação não parava por aí. À noite a badalação continuava nos bailes de todos os clubes onde predominavam as famosas mortalhas, desde o Clube do Grêmio (Praça da Bandeira), passando pela AABB, Clube do Serrano, Taquara Drinks e para os mais abastados a mais cobiçada pista apoteótica da festa o Clube Social Conquista. E os embalos de cantos e gritos ficavam por conta das inesquecíveis machinhas como “Jardineira” “Mamãe eu quero”, “Com que roupa?”, “As Pastorinhas”, “Conversa de Botequim”, “O teu cabelo não nega” e assim por diante. O mais interessante ainda é que nos dias seguintes os salões eram cuidadosamente reorganizados e novamente enfeitados para receber a criançada nas manhãs e nas matinês.
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Muito tempo depois outros blocos e afoxés foram criados. Contudo, devido os repetidos afastamentos dos conquistenses para curtir as praias durante o feriado prolongado; em 1989 Conquista abandonou de vez o Carnaval adotando a Micareta. Porém, com a implantação/privatização da micareta, ou Miconquista como era bem mais conhecida, os bailes tradicionais nos clubes deixaram de existir. Veja que tudo isso aconteceu até ontem, anos 1980. A partir daí a festa de Momo mudou de circuito ficando por conta dos gigantescos trios elétricos contratados pelos grandes blocos e alguns poucos pelo poder público. Todos eles animados pela elite artística da música baiana como Daniela Mercury, Ivete Sangalo, Netinho, Luiz Caldas, Bel do Chiclete com Banana, Tatau do Araketu, Durval Lelys do Asa de Águia, Gerasamba que virou Tchan, Babado Novo, Banda Cheiro e (…)
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Também há de se destacar que um dos pontos mais altos da Miconquista a estrutura organizacional. O acesso mediante “abadas-ingressos” davam direito a ostentação de um rico cardápio nos camarotes para comodidade e satisfação da galera. Muita música, muita bebida e muita comida, ingredientes indispensáveis que complementavam o conforto dos foliões. De sorte que esse aparato todo credenciava a Miconquista como sendo um dos atrativos de maior destaque e significação cultural do município. Tornou-se ainda o evento de maior inclinação divulgadora da região, capaz de seduzir adeptos das mais longínquas partes do Brasil e até do exterior, dando a cidade uma visibilidade turística inverossímil.
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Mas porque acabou? Segundo os entendidos, especialmente do setor privado, a alegação é a de que se tornou inviável economicamente, uma vez que a timidez do setor público em apoiar a festa foi um dos pontos cruciais que levaram a extinção. Para outros, também a falta de coragem do empresariado e do governo municipal em querer fazer. Óbvio que ambos os viés têm consistência. A certeza mesmo que eu tenho é que patenteou de vez sem dó nem piedade o fim do Carnaval Conquistense.
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Resta agora, para os que trazem dentro de si a magia foliã, o desafio de se deslocar para outras cidades enquanto há tempo, até porque os valores culturais sistematicamente estão desaparecendo, como ocorrem com os cinemas – as salas de projeção que ainda vingam estão submetidas às hostis dos shoppings centers – e, nesse caminho, o destino da sétima arte também é a inevitável sucumbência. Um bom descanso!
4 Respostas para “Das mortalhas aos abadás-ingresso”
Gilberto
Vc me fez viajar na historia e me recordar de um lindo tempo que vivi em minha terra.
AFRANIO GARCEZ
Caro Ezequiel, mais uma vez você nos brinda com um nostálgico e excelente artigo. A sua narrativa, também possuiu o cunho histórico e sociológico, além é claro, do aspecto cultural. Ao terminar de ler o seu artigo, e ver nominados os blocos que aqui existiam, e muito dos quais eu costumava brincar, como o Snobs, e na última vez que fui a uma micareta no finado Essecutivos do amigo Barbosinha, que ao que me parece foi obrigado a bater em retirada, em razão da brutal concorrência. Mas foi uma viagem agradável que você, meu caro amigo nós proporcionou. Também deixou uma verdade que nossa cidade precisa conhecer, qual seja: O carnaval foi extinto enterrado. A micareta foi privatizada e entregue de presente para um único empresário, em detrimento de uma populalção inteira que possui o direito líquido e certo de ter diversão e lazer. De igual forma fizeram com o nosso São João, e o pior, é que mentem deslavadamente, e culpam o crescimento geográfico de nossa cidade como causa determinante para tais acontecimentos. Os clubes já não são os mesmos, as boates já fecharam, mas nossa memória não. Desde ontem é que estou ouvindo os meus antigos discos de vinil e outros em CD com o Moraes Moreira, Novos Baianos, A Cor do Som, Armandinho, Dodô e Osmar, e em pensamento declino meus pêsames às “de cujus” Carnaval e Micareta e seus familiares, e inclusive aos que covardemente as assassinaram.
Afranio Garcez.
Renato Senna
Ezequiel,
Que saudosismo, hem Ezequiel! Gostei e ao mesmo tempo fiquei triste. Realmente tudo passou, e para pior. Ou será que tudo desgasta a medida que envelhecemos? Bem, a nossa geração não saiba, talvez, responder; mas felizmente vivenciamos tudo que voce escreveu, e conosco vamos levar, “ad infinitum”.
Abração de Renato Senna
Pe. Edilberto
Caro amigo, Ezequiel, não sou saudosista,mas tenho saudades dos tempos passados, como foi citado no seu artigo.Fiquei vislumbrado quando li e descobrir suas riquezas detalhadas sobre o nosso carnaval com seus blocos seus cantos suas machinhas tudo tipico do nosso tempo, não esquecendo o famoso bloco da Gabirada e seu sofonero Suia a frente dando as coordenadas, passando pelas ruas de Conquista. Quero parabenizar por este post que nos faz rever que o nosso carnaval, alem de estar eletronizado se tornou uma festa de industria de dinheiro trazendo muitas vezes uma violência para os foliões.Lembro ainda do bloco dos caçadores com suas espingardas cochorros magros e caças empalhadas fando uma alegria a todos danto um toque esoecial com seus litros de pinga. Um abraça do amigo Pe. Edilberto