“Por que morrer com a desgraça do sofrimento? É melhor morrer por envenenamento”. Este questionamento do documentário “Jogo de Cena”, carregado de olhar incrédulo, de cor negra, me fez pensar no cessar da consciência e de eu ter escolhido ficar. Eu estava no apartamento de Di. Um espaço tão cheio de existência pra mim. Guardado de relíquias e devoções, lembranças, recordações. Di deve desconhecer por inteiro o significado daquele retiro particular. O chão de tapulho arranhado. O pufe de couro. A samambaia. A copa onde encontrei Cecye desfalecida. O mousse de maracujá com sementes. A janela de onde se vê o pequeno parque. A sombra boa de meu irmão Thiago. O All Star de Indhira. A figurinha ainda gasta no guarda-roupa vazio, de Maryse, onde se lê: “Nunca mais, nem morta, não quero, não posso, não devo. Humm…Então tá”. Na recapitulação da memória, apagaram a luz. Quebrei a promessa de não fumar em ambientes fechados, mas fiquei. “Se esta rua, se esta rua fosse minha…”, cantou, chorando, uma personagem da vida real, num pedido de perdão à filha. Já era manhã de Carnaval, quando sentei na cama vestindo uma samba-canção com estampa do Taz, tomei um copo com leite gelado e fiz anotações na agenda. Eu ainda estava desfiando meu rosário, mas fiquei. “Eu vou fazer uma canção para ela. Uma canção singela, brasileira, pra lançar depois do Carnaval”, ouvi a velha Zé cantando pelos cômodos da casa de Luc. Eu vou, então, fazer uma canção de amor. “Faça o que você ama”, gritou a propaganda do Blackberry em canal fechado. Eu fiquei. Num dia, o cheiro do capeletti tomou o vácuo, no outro, verduras grelhadas atenuaram o calor. Aquiles, o akita, corria atrás de Bruninho. Ele, pequeno, cabelos encaracolados, pés descalços, seminu, feliz por estar numa rede de descanso ou por carregar pedras de um canto a outro. Na cozinha, Flávio fritava bifes. No quarto, o riso alto de Raquel ou o tenor de Tenório. “Cão dos infernos!”, gritava ele. Clarissa dormia e Rebeca pesquisava lingerie no computador. Vez em quando, Nalva me pedia cigarros às escondidas. Família de traços italianos. De gusto ou palatare, fiquei e provei outras iguarias nestes dias. Quesadilla florentina no mexicano Blanco’s e pão de três queijos com almôndegas, peito de peru, bacon, cheddar, molho de cebola agridoce, rúcula, azeitona preta, pimentão e cebola roxa no Subway. No exercício do prazer de comer, posso ser Proust ou o Marquês de Sade, mas “Nine” me fez dormir. “Você está tal qual um mauricinho”, ironizou uma cantora. Estilo não seria, pois, uma questão de escolha? “Faça a sua”, já disse Gloria Kalil. Escolhi ficar. E ver o decote de Daniela pela televisão. E ver libélulas como há anos não via. E um gavião, no ar, preparando o bote sobre a presa. E a luz mudar de tom na cidade. Escolhi ficar com o fim de tarde. E conheci Regiane, do círculo de Alex O.. Foi o tempo de um “olá” e de um “até”. Fiquei e repousei. Aliás, relaxar parece mesmo ter um som igual ao seu significado. Não existia, por exemplo, enfado no Posto da Solidão. Das 3h da tarde às 3h da manhã, não. Túlio, o homem negro sedutor, de sorriso largo e olhos puxados; Helder, que ri por tudo e por nada; meu passado Luciana, sempre “eu sou free”, e seu bofiscândalo; o cabelereiro que acredita no Zodíaco; Gilvandra, a militante de óculos escuros, Isaías, o militante de óculos de grau; a coruja; a bicha de vermelho McLaren; o viciado em cocaína e o que perdeu a razão; Paulo e o gozo venéreo das mãos; e tantas outras gentes catalisadas ali, em torno de minha camiseta cor de violeta. Parecia uma busca amotinada pelo sentido da vida vigente. Por que, então, a beleza não pode ser suficiente? Por que, então, não colocar meus sonhos no caminho dos descrentes? Por que, então, eu não ficaria? “Sob o manto da noite que me cobre, sou o senhor do meu destino, sou o capitão da minha alma”, declamou Mandela na madrugada. Sim, escolhi ficar, mas talvez seja agora a hora de ir ali. Abrandar a alma em Salvador.
Pílula 38
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