Teleanálise: determinismo social

Por Malú Fontes

“Não há um elemento sequer revelado pelas exumações em Conquista que as famílias das vítimas e os denunciantes do esquadrão da morte montado na cidade já não soubessem”.

Durante a semana, uma série de fatos distintos entre si e transformados em notícias nos telejornais apontava, em seu conjunto, para um mesmo fenômeno assustador: o determinismo social que parece soar inexorável e inclemente sobre uma população de crianças e jovens cujo diagnóstico de futuro aparenta ser mais claro que as previsões dos cartomantes xexelentos que se auto-anunciam nos postes e muros da cidade. Um grupo de mais de 70 homens jovens foi preso em uma única batida policial durante a festa de aniversário de um traficante que comemorava 25 anos, numa casa de eventos, em Feira de Santana. Pertinho dali, em Santo Estêvão, autoridades do Judiciário anunciavam a criação de penalidades em dinheiro contra os pais cujos filhos não freqüentem assiduamente a escola. Um dono de Lan House na cidade lamentava o prejuízo que isso gerará em seu comércio.

Em Vitória da Conquista, uma Força Tarefa envolvendo Justiça e Segurança Pública deu início às exumações dos corpos dos jovens aparentemente executados por policiais há cerca de um mês. E o caso merece ressaltar: sempre que se vê, e é sempre em casos rumorosos, o expediente da exumação, tem-se certeza de que alguma autoridade fez o seu trabalho corretamente e que a negligência foi desejada. Não há um elemento sequer revelado pelas exumações em Conquista que as famílias das vítimas e os denunciantes do esquadrão da morte montado na cidade já não soubessem. Havia autoridades que preferiam, claro, não apenas não saber como, mais importante, esconder. Em Salvador, morreu na terça-feira um cordeiro, de 19 anos, agredido, segundo familiares, pela Polícia Militar durante o Carnaval enquanto trabalhava em um bloco.

ESCRAVIDÃO DISFARÇADA – Voltando a Salvador, as notícias sobre educação não são das melhores. Os professores da Rede Municipal iniciam a semana em greve e algumas escolas da Rede Estadual permanecem sem funcionar, apesar do início do ano letivo, pelo fato de obras de reforma não terem sido concluídas. Esse amontoado de fatos e notícias, aparentemente desconectados entre si, diz muito ou quase tudo sobre os brasileiros pobres, jovens e crianças, do andar de baixo. As mesmas crianças e os mesmos jovens cuja rede pública de educação capenga, ora sem estrutura, ora sem professor, ora sem prédio, carteira ou merenda, e cujas famílias para escolarizá-los, mesmo que mal e porcamente, só à força da lei e da punição em forma de multa, são os mesmos, literalmente, cujo destino só por milagre será diferente daquele do cordeiro morto em conseqüência de um trabalho escravo com outro nome.

Que tipo de futuro profissional e social terão os milhares de meninos que saem dessas escolas, deficitárias de tudo, para além dos bicos da escravidão disfarçada e sorridente dos desdentados, das festinhas do tráfico com direito a prisão de baciada e da execução sumária na engrenagem descontrolada da violência brasileira? Diante de notícias desse quilate, separadas por editorias nos jornais impressos e por linhas editoriais contidas ou sensacionalistas no telejornalismo, o que se vê é uma sociedade prostrada, como se à espera de um milagre, mediante o qual o caos humano e social do país pudesse, num dia ao acaso, ser contingenciado num piscar de olhos.

JACKSONS – A trajetória noticiada do cordeiro morto, do carnaval à agressão e à morte por seqüelas de pancadas no pulmão, seja por ação violenta da Polícia ou de quem quer que tenha sido, ilustra todo o modus operandi do mundo diante de rapazes como ele, Jackson Lima: desescolarizado, negro, incapacitado (pelo resto da vida, mesmo que não morresse precocemente) de romper com as regras do determinismo social que o empurrava para uma escalada ininterrupta de miséria, sem condição de empregabilidade e desassistido pela rede de saúde que o recusou até a morte, segundo a família e amigos, por falta de médico, de medicamentos e pelo clássico argumento do equipamento de Raio X eternamente quebrado, essa entidade renitente do discurso de fracasso da saúde pública.

O único dado que fará cada vez mais diferença aos olhos de quem quer fazer de conta que os Jackcons inexistem é: eles são muitos, não vão desaparecer sob o chão e cada escola capenga oferecida pelo poder público fabrica anualmente milhares deles. À sua espera, antes da tela da TV, só os sub-empregos, a Polícia e a Violência.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado em 28 de fevereiro de 2010. [email protected]


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