Liberdade de Expressão e Responsabilidade: “Negrinha”

Fábio Sena 

Foi Monteiro Lobato quem deu esse título a um conto seu. No conto, ele narra – do modo mais cruel possível – os maus-tratos recebidos por uma garotinha negra das mãos de uma senhora lá no início do século retrasado.

Depois do episódio envolvendo outra menina negra em Vitória da Conquista, foi deste conto que me lembrei imediatamente. O fato é que – muito resumidamente falando – uma garotinha de cerca de 5 anos desapareceu no início deste ano. A ocorrência virou manchete na locução de um radialista. Dentre os diversos comentários dele relativos ao tema – o sumiço da garotinha –, um ganhou relevo (sublinhado e em negrito): “Uma criança negra! Raptar uma criança negra, pra quê?!”.

Considerando a suspeita de seqüestro, a pergunta ganha contornos de racismo. E foram esses contornos que deram causa à polêmica que, por muitos dias, grassou na cidade e no mundo, já que fora debatida na internet. Dito de outra maneira, ele estava dizendo: “Fosse uma garota branca – o padrão nobre de gente –, vá lá!, mas uma menina negra não iria ter nenhuma serventia para um suposto seqüestro”.

Sou negro. Mas, antes de ser negro, sou gente. E, na qualidade de gente (mas impulsionado pelo negro que em mim habita), trago à tona alguns comentários sobre um tema que ainda sobrevive e onde menos deveria: na voz de um radialista. Senão, vejamos.

Comentários com algum sabor de racismo são comuns em todas as sociedades e em todos os níveis dessas mesmas sociedades. E isso se verá em Conquista e em Londres. E, tanto em Londres como em Conquista, o denominador comum entre aqueles que, de algum modo, falam contra as minorias, é justamente a falta de esclarecimento, a falta de uma visão crítica do mundo, a falta de alguma maturidade civilizatória, a falta de um mínimo de bom senso. E a falta desses ingredientes é imprescindível ao bom andamento dos sentimentos de racismos ou qualquer outro sentimento que ponha os homens em condição de desigualdade.

De um radialista – a quem foi delegada a possibilidade de ser um comunicador com alta voz no âmbito de uma metrópole como Vitória da Conquista – espera-se que, nele, esses ingredientes sobejem. Que nele sobeje o bom senso – para que a opinião pública – influenciável por um formador de opinião – pondere com alguma racionalidade sobre os temas graves do mundo moderno. Que nele sobeje uma visão crítica do mundo, o que implica em analisar com o devido distanciamento os atos e fatos da sociedade, mostrando, sobre eles, todas as nuances, todos os lados, de modo a garantir, para o ouvinte, que não há juízos de valor em jogo e, havendo, que estejam embasados na mais sólida das análises. Que nele sobeje, por fim, esclarecimento, ou seja: que esteja ao corrente de todos os aspectos do tema a ser tratado, de modo que nada seja acrescido nem subtraído.

Todos os dias, ao longo de muitas horas, o radialista fala ao povo conquistense. Emite opiniões. Forma juízos. Voz tonitruante, é por falar muito alto e com impostação de voz que, por vezes, se pretende dono da razão. É que, muitas vezes, tem razão não quem tem razão, mas quem tem impostação de voz, quem fala alto.

Ele é humano e é gente. Frágil, portanto. Passível de errar. Passível de, também ele, agir/falar movido por sentimentos nem sempre coerentes, nem sempre bem ajuizados, nem sempre razoáveis. Mas, se se senta em sua mesa de trabalho para planejar a pauta do dia, se liga os microfones e se põe a falar – fala que deve ser cuidadosamente pensada -, nesse momento sai de cena o homem para atuar o radialista (em outro caso pode ser o professor em sala de aula, um médico em seu consultório), de quem se espera um trabalho prévio de coleta, interpretação e contextualização de uma informação, para transmissão ao público-ouvinte, pautando-se pela ética e pelo discernimento.

No caso específico, radialista de longa data, talvez ele caminhe por um terreno nem sempre seguro: o do improviso. Dão-lhe o tema e, sem planejamento, lá vem uma enxurrada de avaliações e análises nascidas, em geral, da superficialidade. Sai de cena o profissional do jornalismo para tornar-se protagonista o homem. Não quero ouvir o homem. Quando quiser ouvir opiniões de homens, vou à casa de Merinho. Merinho, carroceiro, em que pese ser homem, é homem de bom senso, de bom discernimento e de análises quase sempre razoáveis.

Se um radialista noticia as circunstâncias do desaparecimento de uma garota, descreve-a e conclama autoridades e a sociedade organizada a que contribua, cada a um a seu modo, para encontrar a criança. Até aqui, ele presta um serviço à sociedade. Se avança fora deste perímetro, entra no âmbito das especulações e erra.


8 Respostas para “Liberdade de Expressão e Responsabilidade: “Negrinha””

  1. Paulo

    Não vi discriminação no comentário do referido locutor. Acredito que o amigo está dando destaque exagerado ao tema.
    Porque?

  2. jdean

    O locutor em questão não tem préconceito.Pois o mesmo,por diversas vezes teve negros como funcionário!.Decerto que a mensagem sobre o desaparecimento daquela criança.Foi um tanto quanto truncado.

  3. JOAQUIM BORGES

    Tambem sou negro e não vi discriminação no comentário, talvez ele estava se tratando das caracteristicas da menina pelo fato de o rádio obviamente não ter imagens e a noticia ficar com poucas informações. Nos negros temos de deixar de complexo de inferioridade e perseguição. Tanto exagero o autor só estar querendo polemizar.

  4. lucio

    Destaque exagerado ao tema: realmente é isso que faz com que pessoas sejam atacadas no Brasil o tempo todo e sem justiça porque tem gente que acha normal discriminar e ser racista. parece que ninguém tem mais raiva das coisas ruins.

  5. adelson

    os profissionais de comunicaçõ devem ter pelo menos respeito,
    e eu não estou nem falando de ética, ao se dirgirem ao seu público
    o citado radialista pode até nem ter tido intenção de ser
    preconceituoso, a final quem acompanha seu trabalho sabe que ele
    não é dessa linha de pensamento, mas o fato e que ele foi
    preconceituoso em suas palavras, eu seu tom, isso não pode ser
    mudado, fato é fato.

  6. José Lucido

    “Sequestrar uma menina negra, pra quê?”. Qual desdobramento pode-se fazer desta frase, se não um único e irrefutável: o precoceito racial, às escâncaras, sem maquiagem, sem mensagem subliminar. É apenas isso. Defender o contrário é, inegavelmente, comungar do preconceito, é afirmar o Brasil racista no qual vivemos. Fábio Sena tem razão em sobra, e sem Hérzem sobra racismo, discriminação e preconceito, mas não faltam adeptos do seu discurso perverso, mesquinho, pequeno e irresponsável.

  7. paulo roberto

    Sou negro e me orgulho da minha cor, ouvi o comentário do radialista e não sou seu fã, mas não observei o racismo que vem sendo propagado pelo companheiro Fábio Sena. O amigo está preocupado em polemizar porque é funcionário da prefeitura, assim faz média com o chefe do executivo. Tem tanta coisa pra gente falar, tanta discussão a ser feita, por que ficar batendo na mesma tecla todos os dias? Se houve racismo, cabe à justiça resolver, não somos palmatória do mundo. Sou professor e passei dessa fase de achar que tudo é racismo, precisamos nos afirmar como negros, viver a nossa negritude, buscar os nossos direitos de sermos respeitados pelo que representamos e não ficarmos tentando nos dar bem toda vez que alguém nos chama de negro. Negro sim, gosto de ser negro, me orgulho de ser negro e esse discurso demagogo não me afeta. Chega de falar desse assunto, coisa ridícula, parece que existe mais preocupação do colega em apontar o erro do radialista que mesmo de buscar justiça para o crime bárbaro praticado contra aquela criança.

  8. Adilson santos

    o articulista foi muito bom ao escrever sobre o tema e fazer uma critica construtiva em benefício da sociedade e também do radialista que fez a frase tão infeliz porque é preciso ter cuidado com essas falas que agridem as pessoas

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