O peso da morte de Zé Alencar

Foto:  Vinícius Thompson/Futura Press

No velório de José Alencar, ao lado de Dilma Roussef, Lula se emociona ao se despedir do amigo e ex-vice

“Há mortes que para um país e para a humanidade pesam menos que uma pluma. Há outras, porém, que pesam toneladas” (Mao Tsé-Tung).

Por Vitor Hugo Soares

Atiradores de plantão podem pegar pedras no meio da rua – sempre existem alguns ao alcance da mão em obras inacabada por aí – para jogar. Apesar do risco, recorro à citação das palavras do ex-líder chinês Mao Tsé-Tung na abertura destas linhas por considerá-la a mais completa tradução de sentimentos político e humano diante da partida de José Alencar.

Cremado quinta-feira, em Belo Horizonte, o empresário e ex-presidente da República foi velado duas vezes (em Brasília e Minas) em meio a demonstrações de pesar e comoção raramente vistas no Brasil, principalmente na morte e enterro de homens públicos. Registre-se, por mais raro ainda, que os tributos partiram de todas as categorias sociais e começaram ainda no hospital paulista de onde saiu o corpo de Alencar.

No caso, segue mais apropriada e atual que nunca a frase que aprendi quando frequentava ao mesmo tempo as salas de aulas das faculdades de Direito e de Jornalismo na ardente Universidade Federal da Bahia nos agitados dias dos anos 70.

A UFBA era então um emblema. Reduto de saber, ensino de qualidade e de resistência contra a ditadura que se implantava no País. Movimento que na origem unia militares e civis, se prolongaria por 21 anos até a redemocratização, mas cujas marcas que remetem à disseminação do medo e da intolerância seguem latentes, a deduzir pelos zumbidos em círculos militares nos últimos dias e as declarações de um de seus principais porta-vozes atuais, o deputado Jair Bolsonaro.

Quando li a citação pela primeira vez, o “livrinho vermelho do presidente Mao” ainda não havia sido “renegado” pelas “massas”, nem “caído em desgraça” nos círculos de comandos das “esquerdas”. Ao contrário, era sucesso total de vendas e de público no mundo inteiro: de Salvador a Paris; de Buenos Aires a Marrakesh; de Roma a Bagdá, de Londres a Tóquio. Únicas exceções: Moscou e Havana, onde a simples posse do livrinho podia dar em expulsão do Partido, cadeia ou desgraça política.

“Mas isso é passado, coisa de saudosista”, dirão os politicamente corretos de hoje. Não discuto, apenas confesso: foi no livrinho que pensei primeiro, desde o momento em que, no começo da tarde de terça-feira, vi na TV a imagem daquele médico do Hospital Sírio Libanês em visível esforço para não cair em prantos.

Desolado, dizia aos jornalistas que o cercavam ansiosos por uma notícia de nova reação do bravo paciente: “Ele está sedado, sem sofrimento, prestes a descansar”. E o doutor saiu apressado da frente das câmeras, provavelmente em busca de um lugar reservado para liberar a sensação de pesar que mexia com os sentimentos do experiente profissional da medicina. Sim, era o desfecho de uma situação previsível e natural, mas difícil de aceitar no caso de José Alencar, até para o especialista.

Em Brasília, a presidente Dilma Rousseff, comovida também, mas solene e impávida em público diante do corpo velado no Palácio do Planalto. Ao lado, o ex-presidente Lula é a outra face do mesmo sentimento: ao retornar da viagem de tributos em Portugal e ver pela primeira vez o corpo inerte do “companheiro Zé Alencar”, cai em pranto solto, assoado na manga do paletó. Em Belo Horizonte, na rua próxima ao Palácio da Liberdade, a típica mulher do povo de Minas, cabelos embranquecidos, chora como dezenas de outros cidadãos anônimos com as mãos no rosto.

Tive apenas uma experiência profissional e pessoal mais próxima de José Alencar, mas suficiente para entender todo o pesar nacional com a sua partida. Foi na Bahia, dia 12 de setembro de 2002. Já narrei o episódio marcante em outros textos, mas não custa resumi-lo aqui, por oportuno e referencial.

Fervia a arrancada final e decisiva da campanha que desaguaria na inédita escolha no Brasil de um torneiro mecânico, ex-dirigente sindical do ABC, ao Palácio do Planalto. “Naquele dia, um temporal, assustador ameaçava afogar Salvador, enquanto se aproximava uma noite daquelas em que o melhor a fazer era ficar em casa ou ao abrigo de um hotel, mesmo sendo um político à cata de votos em encardido embate presidencial. Pegar avião nem pensar, ainda mais se a pessoa ardia com febre de mais de 38 graus, e estava com a garganta estropiada por uma faringite agravada pelo excesso de uso das cordas vocais em comícios sucessivos país afora”, escrevi então.

Era esta exatamente a situação de Alencar, bem sucedido empresário – dono da Coteminas, campeã do ramo têxtil no País -, ao chegar à sede da Associação Comercial da Bahia – mais antiga e das mais conservadoras entidades de empresários da América Latina – para uma palestra com o objetivo de derrubar na terra de Antonio Carlos Magalhães, “resistências ainda fortes na elite empresarial do Nordeste, quanto a apoiar o barbudo sindicalista do PT para ocupar o mais alto posto de comando da Nação”.

Lembro bem: na cidade já corria o boato de que Zé Alencar não iria mais ao encontro na ACB: “Foi para a cama”, espalhavam adversários, com ar de troça. Puro engano, como uma figura saída de livro de Guimarães Rosa, o mineiro vestido em terno de linho branco, “garganta quase tapada, rouco e ardendo de febre, chegou debaixo do toró, falou sem parar durante uma hora e meia e levou mais de 40 minutos respondendo a perguntas dos desconfiados homens de negócios da Bahia.”

Na manhã do dia seguinte, o candidato a vice pegou o avião empanturrado de antitérmicos e foi encerrar a campanha presidencial em conversas com mais empresários em Itabuna e Vitória da Conquista. O resultado é o que todos conhecem. Uma morte com peso de toneladas, portanto.

Difícil esquecer ou não sentir pesar pela partida de uma figura assim tão rara, quanto Zé Alencar.


Uma Resposta para “O peso da morte de Zé Alencar”

  1. Alvaro Santos

    Parabéns Vitor Hugo!!!

    Brilhante artigo, serve para combater a descrença e a falta de reconhecimento de algumas pessoas para com esse grande brasileiro. José de Alencar sem dúvida vai deixar um legado excepcional ao Brasil e aos brasileiros.

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