Pequenas Notas

Elomar e Guimarães Rosa: Desindoidecer, desindoidar

Por Paulo Pires

João Guimarães Rosa, assim como o grande poeta-místico-pensador-compositor Elomar, era um sujeito autêntico. Ambos são brasileiros legítimos e se assemelham em muitos aspectos. A parecença deles começa pelo lado estético [Rosa e Elomar são inventores de linguagens inusitadas em seus campos de criação]. Outro aspecto revela zelo e meticulosidade quando se expressam. Um terceiro aspecto, quase conseqüência do anterior, decorre de uma razão simples: Sendo homens muito criativos, são detentores de uma autocrítica impiedosa sobre o que produzem.

            Rosa, em conversa com Pedro Bloch [ele nunca concedia entrevista, gostava realmente de conversar] chegou a assinalar que se lhe permitissem colocaria nas capas dos seus livros críticas todas as desfavoráveis ao seu trabalho. A palavra entrevista para ele era um horror. Algo semelhante a ojeriza que Elomar nutre pela palavra show. Elomar nunca dá show. Elomar realiza concertos e fim de papo.

Rosa era um sujeito tranqüilão.  Dizia “não estar nem aí” para quem não admirasse sua obra. E garantia, entre realista e confiante (com um pouco de presunção também) que seu trabalho mais cedo ou mais tarde teria um lugar entre os mais altos da chamada Alta Literatura. Sua previsão se confirmou.

O menino do sertão virou cidadão do mundo. Foi traduzido em todos os continentes e morreu admirado por quase todos os críticos do Brasil e exterior. Na conversa com Bloch há uma pequena mostra de sua passagem pelo campo literário.  Um pequeno trecho abaixo dá mostra de sua importância. Vejam alguns lugares, pessoas, publicações e entidades que lhe fazem louvores na conversa com Bloch:

             “Não preciso perguntar nada pra saber que The Devil to day in the Backlands (tradução americana de Grande Sertão e que textualmente significa: “Vai Haver o Diabo no Sertão”) foi editado por Knopf este ano; Il Duello (Primeira parte de Sagarana) tem êxito enorme na Itália, enquanto já se prepara a segunda parte; Seuil, da França, publicou, em 1961, Buriti (uma parte de Corpo de Baile) que, por sinal, não inclui a novela Buriti, mas três outras; em 1962 surgiu Les Nuits du Sertão (L’Express proclamou: Guimarães Rosa é Giono multiplicado por dez!); Livros do Brasil, de Lisboa, alterando todo o seu programa de publicação, dão prioridade absoluta à obra de Rosa, já tendo lançado Sagarana, com êxito invulgar; Feltrinelli, de Milão, publicará Corpo de Baile, Grande Sertão e obras futuras; na Suécia, na Alemanha (Kipenheuer), na Noruega (Gyldendel Norvsk), na Dinamarca, na Tchecoslováquia (Dilia), na Holanda, na Finlândia, na Espanha, em toda parte a obra deste vulto extraordinário de nossa literatura está provocando acaloradas disputas pela prioridade de publicação”.

            Quem diria que aquele menino nascido em Cordisburgo-MG, cidade hoje com menos de um terço da população de Itambé, saísse daquele lugarzinho e fosse ganhar o mundo.  Quem diria? Pois foi isso que aconteceu com Joãozito. O menino atingiu alturas que poucos anteviam ele pudesse alcançar.

            Sentimo-nos na obrigação de falar desse gênio, porque nos seus 102 anos, completados no final de junho último, só pessoas do ramo e das academias literárias e universitárias se dedicaram a lhe prestar justas homenagens. Rosa deveria ser lembrado oficialmente todos os anos. Por que razão? Porque colocou e coloca o Brasil em um panteão literário que só o vôlei e o futebol de vez em quando nos colocam no plano esportivo. O Chile faz isso constantemente com Pablo Neruda. A Alemanha lembra Goethe todos os anos com um Feriado Nacional. E nós? Nós fazemos reverências a quem? Infelizmente, só aos cantores de música sertaneja (que de sertanejo pouco tem). Nossos cantores bregueiros são os grandes artistas (?) da nação brasileira para nossa Mídia.

            Será que o nosso mundo está doido? Diadorim (um dos enigmáticos personagens de Guimarães Rosa) travava diálogos confusos com Riobaldo. Este, louco pelo companheiro, cuja obsessão era vingar a morte do pai Joca Ramiro, vive com a cabeça endoidecida para cravar um punhal no coração de Hermógenes. Ao final consegue, mas também morre. Só depois de sua morte é que Riobaldo descobre: Diadorim era mulher.

            Era um mundo doido. Rosa chegou a dizer que seu livro era uma autobiografia irracional. E era mesmo! Conforme alguns críticos (especialmente os que utilizam esquemas freudianos) a obra rosiana contém particularidades que só a pós-modernidade poderá explicar. O fato é que o mundo precisa urgentemente desindoidar, desindoidecer. Subvertemos os valores de tal modo que “realmente quem tem valor tá fora”. Viva Elomar, que se abstraiu da mundanidade superficial e criou seu maravilhoso Universo Contemplativo do Sertão.


2 Respostas para “Pequenas Notas”

  1. Madera Demelo

    Caro professor Paulo Pires, embora não nos conhecemos pessoalmente, admiro muito os seus artigos pela importância em tratar temas de fino trato como este.Contudo, neste em especial, terei de fazer-lhe uma crítica. É incomcebível esta comparação que o senhor fez entre o grande João Guimrães Rosa e o artista Elomar Figueira Melo.Elomar tem seus méritos, isso é inegável, mas o cantor fez suas obras adaptando algumas particularidades culturais do Portugal medievo,do cancioneiro popular e das famosas cantigas de amigo com elementos culturais do sertão caatingueiro que muito se assemelham devido à nossa colonização portuguesa e, em certa medida, à influência galega.Elomar musicou isso e temos essa boa obra.Quanto à linguagem, é muito evidente, mas pouco comentado, talvez por falta de conhecimento de muitos e respeito e até mesmo medo de outros, não se tem o debate adequado sobre este ponto.Elomar plagiou João Guimarães Rosa, não apenas na linguagem, mas em vários aspectos da estética morfológica.Está linguagem que o senhor elomar se jacta de ser “sua”, Rosa criou e sistematizou, e parte, inclusive, na Alemanha onde era representante do Brasil na diplomacia.

  2. PAULO PIRES

    Caro Madera Demelo

    Obrigado pelos comentários.

    Suas observações são procedentes. Ocorre que o próprio Rosa, assim como o nosso Elomar, também sofreram suas influências.

    Em verdade, original mesmo, parece que só o Pecado. Tudo na vida já existia antes desse conceito. Ninguém é original por completo.

    Todos os artistas, em todos os lugares e épocas, foram e são influenciados por tempos, espaços, crenças, idiomas, artes e tudo o mais.

    Mas devemos reconhecer agudeza de espírito em seus comentários para nos alertar sobre alguns aspectos que fazem diferenças entre Elomar e J.G.Rosa.

    Até o tempo (Rosa é de 1908 e Elomar três décadas depois, 1937) contribui para que haja diferença entre os dois.

    Mas, em muitos aspectos, os dois se parecem.

    Principalmente no campo místico religioso. Os dois são incrivelmente crentes em uma porção de coisas fora do mundo material.

    Muitos estudiosos da obra de Rosa veem elementos da obra do gênio mineiro na obra do baiano Elomar.

    Obrigado pela leitura e observações

    Paulo Pires

Os comentários estão fechados.