Paulo Ludovico
Existem certas expressões que, interpretadas ao pé da letra, são de significados inimagináveis. Causariam estragos, caso fossem possíveis de concretização. Pense bem e veja se não tenho razão. Interprete ao pé da letra: “um beijo no seu coração”. Cara isso é de dar arrepios. Imagine você aberto (cortado mesmo) e alguém, tranquilamente dando um beijo, no centro do miocárdio, que, segundo os léxicos, quer dizer o próprio músculo cardíaco. É de arrepiar, alguém, ao se despedir, me lascando um “beijo no coração”. Não seria bem mais agradável e prazeroso receber (de uma mulher, óbvio) um terno beijo no rosto e, se for o caso, nos lábios, nesse caso, não tão terno (na língua, vai…). Coração bate, pulsa, bombeia, tem enfarto, para de bater e pode fazer qualquer outra coisa, menos receber um beijo. Só para ilustrar, tenho um amigo que diz que o cara que inventou a expressão “beijo no coração” merece um “beijo no cérebro”. Arg!
E, ao se despedir, alguém que pretende entrar novamente em contato, inocentemente diz: “Depois eu lhe comunico”. E não venha com essa que é do verbo comunicar, o que vale aí é o fonema, ou seja, o som que sai dessa expressão. No meu ouvido, soa assim: “Depois eu lhe como o nico”. Tô fora, vá comer o nico do cão. Nada contra quem come nico ou dá nico, apenas, tô fora. E essa? “Depois eu lhe ligo”. Será que sou aparelho elétrico, com botão “on, off”?
Quer outra? Lá vai: “isso é mais feio do que o cão chupando manga”. Pense você, que desgraça de feiúra é essa. Será que alguém já viu o cão e o que seria pior, chupando manga?
Por falar em feiúra, é impossível não me lembrar de Maria, uma empregada doméstica que tinha na casa de meus pais (lá em casa, como costumamos dizer, ao nos referimos à casa de nossos pais). Cozinheira de mão cheia. Gente boa, Maria! Não sei por onde anda ou se, ainda, é viva.
Maria era uma das criaturas mais feias que tive a oportunidade de conhecer. Se muito, tinha um metro e meio de altura. Isso de um lado, porque do outro, o ombro ficava uns cinco ou seis centímetros mais elevado. E não era de propósito, essa diferença era na posição normal. Isoladamente, qualquer parte do rosto de Maria era feia: olhos, boca, orelhas (essas nem se fala), dentes, cabelo. Queixo? Acho que ela não tinha. Olhando pra Maria, ficava a certeza de que quando o criador estava distribuindo feiúra, ela furou a fila umas 250 vezes. Acho que a expressão “obra inacabada” se referia, exatamente, sem tirar nem por, a Maria. Quando minha irmã mais nova nasceu e começou a enxergar o mundo, era só olhar prá Maria e se derramar (olha aí outra expressão esquisita) em lágrimas. Dona Dalva, minha mãe, gastava horas e horas, tentando fazê-la calar, tal era o estado de choque da coitada. Resumindo, a aparência de Maria era a do próprio “cão chupando manga”. Mas, com o passar do tempo, minha irmã foi se acostumando e a figura de Maria já não parecia tão assustadora como dantes. Isso prá nos todos.
O que “se assucedeu” com Maria, e que conto agora, foi lá pelo início da década de 70. Eu tinha uns 13 ou 14 anos de idade. Como acontecia sempre, estávamos todos sentados à mesa (meus pais e meus irmãos. Minha irmã já não chorava mais ao ver Maria), almoçando, quando ouvimos e vimos, na TV, a notícia da prisão de um estuprador em série, que havia praticado o crime com mais de 20 mulheres e, para alívio da população do lugar a que se referia matéria, acabava de ser trancafiado. Prenderam o tarado. Era assim que chamavam: o tarado. Eu, na inocência de meus 13 ou 14 anos, perguntei a Maria:
– Maria. Admitamos que você estivesse passando numa rua, numa noite fria e sombria e, de repente, ao levantar o rosto, desse de cara com esse tarado que, com um olhar lascivo estava dirigindo em sua direção? (Claro que não perguntei assim, é só prá dar mais suspense)
Maria, com a tranqüilidade que marcava seus gestos, trazendo da cozinha uma de suas iguarias, respondeu sem pestanejar:
– Essa sorte, Deus não me deu!!!