Por Paulo Ludovico
Aparecido (do Opção, FTC e Fainor) é professor dos mais competentes. Em disciplinas que envolvam cálculo, o bicho é “boca de zero nove”, como se diz na gíria. Se pra uns, palavra cruzada, jogar baralho, bater um babinha, assistir a TV é a diversão, pra Aparecido o passa tempo é tocar violão e resolver problemas de matemática e daqueles bem cabeludos, que ninguém mais sabe, nem pra onde vai. “Tá” difícil a questão? Entregue a Aparecido que logo sai a resposta. “O danado parece até que tem parte com belzebu”, já vi muitos falarem isso. Agora, pense num cara bom de prosa, coração pra lá de generoso. Nem precisa se esforçar muito e logo vem a figura do professor Aparecido. Piadista que só ele. E falo com conhecimento. Lá pelos meus tempos de Salvador, por volta dos longínquos 1979 (do século passado, acredite) eu e Aparecido lecionávamos Matemática, no Colégio e Curso Águia, que ficava no centro da capital, na Praça da Piedade. Éramos dois tabaréus do interior, tirando uma onda lá no meio dos soteropolitanos. De vez em quando, batia aquela saudade de casa, que chegava a dar arrepios. As coisas não eram fáceis como hoje. Não tinha avião toda hora e quando tinha era coisa pros mais abonados. Comunicar com o pessoal de casa, só por carta (quatro dias para chegar aqui), telegrama era coisa cara, só cabiam poucas palavras. Não tinha esse negócio de internet (e-mail, facebook, twitter e outras coisas do gênero). O jeito, era nos encontrar, para relembrar da vida no interior. Eram as intermináveis (e agradabilíssimas, diga-se de passagem) sessões de nostalgia, que, geralmente, aconteciam em finais de semana.
E foi num desses encontros nostálgicos, que começaram a acontecer os fatos que ilustram o nosso causo de hoje, protagonizado pelo velho professor Aparecido.
Era uma quinta-feira (ou sexta, não vem ao caso), de um dia de verão, lá do ano de 1979, quando, deparando-me com Aparecido, num dos corredores do Colégio Águia, o convidei para almoçar lá em casa. O evento ia ser naquele próximo final de semana, num dia de domingo. Ah! Esqueci de dizer que Aparecido é daqueles que poderíamos chamar de “bom de garfo”.
Recém casado, eu morava no Largo de Amaralina, na orla baiana, um lugar privilegiado pela natureza (pena que os homens insistem em destruir). Na frente de meu prédio (que está lá, até hoje), no largo propriamente dito, ficavam, estrategicamente distribuídas (em círculo), cerca de 10 baianas de acarajé, que entre as suas iguarias típicas, traziam as terríveis pimentas que iriam, mais tarde, fazer parte de nossa história.
Por falar em pimenta, até hoje sou apreciador “da fruta”, inclusive, modéstia à parte, faço uma de dar água na boca. O “brabo” chega a repetir o prato, só pra saborear mais dessa minha pimenta. Aparecido também é (desde aqueles tempos) amante das pimentas, mas disso, só fiquei sabendo, depois.
Perto do meio-dia, daquele domingo, chega Aparecido. Estaciona a Brasília (é amigo, já existiu um carro da Volks com esse nome), de cor abóbora, novinha em folha (ainda estava com aqueles plásticos, protetores dos bancos). No interior, o tradicional cheirinho de carro novo. Aparecido, orgulhosamente, exiba a sua possante máquina, na orla de Salvador. “Cheio de panca”, dizia outro velho amigo.
Ficamos na varanda conversando, lembrando de nossa vida de matuto interiorano. Não me lembro se degustando uma cervejinha, ou outro líquido qualquer (o calor era de lascar). Entre um gole e outro, permeava a nossa prosa, o nosso velho interior da Bahia (Vitória da Conquista). Antevíamos a feijoada que nos esperava.
Servido o almoço, fomos chamados para sentar à mesa. Aparecido não se fez de rogado, construiu (foi uma verdadeira construção) um prato de fazer inveja ao mais terrível dos comilões. Um prato de respeito, derramando pelas bordas, ao mesmo tempo em que ele anunciava ser um amante de feijoada (pelo tamanho do prato, ele nem precisava dizer). Depois da primeira garfada (e, também, de um elogio ao tempero do feijão), ele arriscou perguntar se eu não tinha em casa uma pimentinha. “Só pra abrir mais o apetite”, justificou-se ele, sob o meu incrédulo olhar. “Claro que tenho”, respondi.
De posse da pimenta, Aparecido despejou a danada com vontade e tudo (mais de quatro colheres. Das de sopa!!!!). Fiquei mais assustado ainda, pois a minha pimenta era bem “ardosa” (pelo menos, eu achava). Tranquilamente, como se estivesse comendo um doce qualquer, Aparecido não esboçou qualquer expressão de “ardência”. Arrisquei uma pergunta: “E aí, que tal a pimenta”? Ao que ele, ironicamente (Aparecido é, até hoje, dos mais gozadores), respondeu com outra pergunta, gozação pura: “Pimenta ou colírio”? Interiormente, sem demonstrar, fiquei puto. “Vou lhe pegar, um dia”, pensei, já arquitetando, maquiavelicamente, uma “vingança” (obviamente, recheada com requintes de crueldade), de fazer inveja o torturador japonês.
Sem tirar meu amigo Aparecido do pensamento, uns três ou quatro dias depois da feijoada, cheguei até a uma das mais antigas baianas de acarajé (Dona Rosa) ali do largo e perguntei como fazer uma pimenta (a dela estava entre as que mais ardiam) que, de tanto ardor, pudesse levar alguém ao desespero total. E Dona Rosa me ensinou (uma receita digna de Ana Maria Braga). Tudo que ela mandou fazer, eu fiz em dobro. É que eu não esquecia Aparecido. Ele não deixava. Sempre que nos encontrávamos nos corredores do Águia, Aparecido não tirava aquele sorrisinho de gozação do canto da boca. Muitas vezes ele perguntava: “e o colírio?”. O que aumentava, ainda mais a minha sede em dar o troco.
Um mês depois de colocar em prática a receita de pimenta de Dona Rosa, abri o vidro da mistura. O cheiro de pimenta incensou toda a casa. “Está ficando como quero”, pensei (sem esquecer Aparecido, naquele dia da feijoada, pedindo para eu pingar um pouquinho da pimenta em seu olho, como se colírio fosse).
Quando a pimenta começou a apresentar “os sintomas”, sobre os quais me falara a velha baiana do acarajé (textura, coloração, cheiro forte, entre outros detalhes), fiz outro convite a Aparecido, pra mais um final de semana lá em casa: cervejinha, bate papo, nostalgia, feijoada, PIMENTINHA etc.
Aparecido, “pilotando a máquina” abóbora, chegou. Tudo igualzinho como no outro dia: beira de praia, conversa, beberico etc. Depois do “papo”, fomos “desafiados” a enfrentar a feijoada. Antes que Aparecido dissesse qualquer coisa, fui logo perguntando (tinha de chegar junto): “Aparecido, uma pimentinha vai bem”? Ele, prontamente, respondeu monossilabicamente: “claro!” e acrescentou: “é daquela”? Preferi não responder. Fui até a cozinha, peguei o vidro do explosivo (ou melhor, de pimenta). A danada estava escura.
Coloquei o artefato na mesa, junto ao meu velho amigo. Mesmo ritual. Ele, com o mesmo olhar de gozação, colocou três ou quatro colheres das de sopa e, misturando pra lá e pra cá, como da outra vez, serviu-se de uma generosa garfada (transbordando pimenta de todos os lados).
Meu sorriso era indisfarçável, chegara o meu esperado dia. A pimenta (em grande quantidade) estava no destino programado. Mas, aos poucos fui passando do sorriso à angústia, quando vi Aparecido (com os olhos em lágrimas, como se fossem sair das órbitas, suando às bicas e vermelho tal qual um pimentão) colocar as duas mão na garganta e balbuciar, quase sem ar e com palavras que insistiam em não sair da boca, tal era o seu estado de asfixia:
– Essa pi… Essa pi… Essa pi…
Ele, por mais que tentasse, não terminava de dizer o que estava pensando, e continuava:
– Essa pi… Essa pi… Essa pi…
Até hoje, mais de trinta anos depois, Aparecido (que encontro todos os dias na Fainor) nunca me falou o que tentou e não conseguiu dizer, naquele fatídico dia de minha “vingança”.
Uma Resposta para “O professor Aparecido e a pimenta da baiana de acarajé”
Daniel
Muito bom o texto Paulo.
Sou de outra geração.
Conheço Zé Antônio e Rodrigo,
respectivos filhos.
Mas não poderia deixar de
elogiar a eloqüente narração.
Viver é lembrar ou
lembrar é viver.
Daniel