A fúria do rezador

Por Paulo Ludovico

Num passado não muito remoto, terminava-se o 3º Ano Colegial em Conquista e continuar os estudos, só em outras localidades. Conheço muitos profissionais que atuam em Conquista, mas que concluíram os estudos em outros lugares. O principal destino era Salvador. Eu por, exemplo, saí um pouco antes. Fui fazer o 3º Ano Colegial com Pré-Vestibular no Curso e Colégio Águia (foi lá onde comecei a carreira de professor), que ficava na Praça da Piedade, bem no Centro da capital da Bahia. Logo que chegamos a Salvador, eu e meu irmão Marcos, fomos morar no pensionato de uma senhora, que viveu em Conquista e era, na oportunidade, bem amiga de minha mãe. Foi uma experiência terrível, inclusive já contada por mim, numa crônica anterior que intitulei “Meu primeiro dia para morar em Salvador”. Nesse pensionato, só aguentamos ficar uns seis meses. Como alguém conseguiria viver num local onde a geladeira era fechada com corrente e cadeado? Saímos de lá. Meu irmão foi morar em outro local. Eu fui morar no pensionato de Dona Lourdes, na Rua Areal de Baixo, nº 7. O pensionato crescera e a proprietária se viu obrigada a alugar um apartamento com três quartos no Areal de Cima. Ficávamos no Areal de Cima e fazíamos as refeições no Areal de Baixo. Conheci muita gente de diferentes paragens nessa época. Inclusive conquistenses. Dois deles são protagonistas de nosso causo desta semana.

Um, desses meus grandes amigos, trabalhava nos Correios, hoje ele é perito da Polícia Civil. “E dos bons”, conforme sempre afirmam Delegados de Polícia. Trata-se do velho Domingão. O outro é Hermison Marques, formado em Ciências Contábeis, atuante em Vitória da Conquista. Esse é uma das pessoas mais espirituosas que tive a oportunidade de conhecer. Morávamos no mesmo quarto, eu, Hermison e aquele nosso outro amigo, o Domingão. Lembro-me bem que estávamos em 1977, ano em que o Corinthians, sagrava-se Campeão Paulista, pondo fim a um jejum que já durava “22 anos, oito meses e seis dias” (detalhava eu sempre, para zombar de Hermison, que era um corintiano e dos mais nojentos). Aquele tipo de torcedor, chato mesmo. Pra ele, naquela época (e ainda hoje), o Corinthians era tudo. O gol do título de 77 foi feito, já no final do 2º tempo, por Basílio, um jogador de “regular pra ruim” (lembrava eu sempre, também pra chatear Hermison).

Estávamos os três, assistindo ao jogo, transmitido pela TV. Hermison era o nervosismo em pessoa. Pronto! Gol do Corinthians. Ato contínuo, Hermison cai tremendo, como se estivesse numa crise epiléptica. Foi terrível fazer o pobre torcedor voltar a si.

O nosso quarto era mobiliado com dois beliches. Em um, na parte de baixo, dormia Domingão,  no outro, dormia eu, na parte de baixo e Hermison, na parte de cima.

Certa noite, estávamos, o três deitados (cada um em seu local, claro!). No quarto, um silêncio que eu chamaria de ensurdecedor, já que Hermison, comumente, não parava de conversar (sabia de tudo e opinava sobre tudo. Se fosse hoje, faria inveja a Drauzio Varela). Recebo, de Domingão (através do gesto clássico), a informação de que o silêncio se devia ao fato de que Hermison rezava, sereno e imbuído, obviamente, dos mais cândidos e puros pensamentos. Para encher a paciência dele, tive uma idéia que logo ponho em prática. Chuto o beliche, pela parte de baixo (no estrado onde se apoiava o colchão de cima), e o chamo, repetindo o nome dele umas duas ou três vezes:

– Hermison! Hermison! Hermison!

Não obtenho resposta. Insisto, dessa vez, chutando mais forte, o beliche e chamando mais alto:

– Hermison!!! Hermison!!! Hermison!!!

Ele responde. Coloca a mão pra fora do beliche e faz repetidos gestos para que eu esperasse.  Insisto, já que o intuito é enfurecê-lo:

– Hermison!!! Hermison!!! Hermison!!!

Ele repete a súplica, mas, dessa vez, noto certa fúria, nos gestos manuais para que eu esperasse, o que me fez pensar:  “estou atingindo o ponto nervoso da vítima”. Repito a perturbação. Chuto mais forte, o beliche e chamando o rezador, num tom mais alto. Aquilo era demais. Hermison não resiste. Ele, é a cólera em pessoa. Acrobaticamente, pula  do beliche (na época, tinha pouco mais de 20 anos de idade). Ele “Cai” em pé, há menos de um metro de onde estou. Com olhos tão arregalados e fora das órbitas (naquele momento, usar óculos, só em formato de sutiã, para caber o olho) de fazer tremerem de medo os irmãos Nogueira (Minotouro e Minotauro).  Apontando furiosamente os dois indicadores em minha direção, diz, aos berros:

– PQP, estou orando, nessa pôrr… seu FDP!

Só não cai em gargalhadas, para não enfurecê-lo mais ainda.

Nessa noite nem eu e nem Domingão conseguimos dormir, era só um olhar pro outro e tínhamos de abafar o riso. Prendê-lo na garganta. Hermison? Ah! Esse continuou no mais profundo silêncio, entrecortado por alguns grunhidos. Só que, dessa vez, o motivo da “mudez” do enfurecido rezador, tenho certeza, não era a reza.


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