Paulo Ludovico
Há certos dias, na vida de cada um, que melhor seria se não houvesse existido. Quem nunca disse: “Hoje as coisas não estão dando certo, parece até que acordei com o pé esquerdo”. Ou, então, como diz alguém que conheço: “Não acerto uma hoje, parece até que pisei em rastro de corno”. O dia, que nunca deveria ter existido na vida de alguém, é um daqueles em que tudo começa dando errado. Numa situação hipotética, logo de manhã, falta água para escovar os dentes. O café não está pronto, é que acabou o gás. Chegar ao trabalho, só se pegar táxi, o carro amanheceu com dois dos pneus furados. Lá pelo meio-dia, de volta pra casa, a difícil tarefa de encarar dez andares de escada, o elevador enguiçou. E o dia vai assim, nada dando certo. À noite, em casa, preliminarmente tudo bem, mas, “nos finarmente”, nem uma caixa inteira de “Viagra” resolveria o problema. E, de “cabeça baixa”, o melhor é dormir e esquecer, afinal, aquele foi um dia que não deveria mesmo ter acontecido. E é justamente sobre um dia assim que vamos contar essa história. Um dia que não deveria ter acontecido na vida de “dona Detinha”, esposa do ex-prefeito, ex-governador da Bahia e ex-senador, Lomanto Júnior (aliás ele já foi prefeito de Jequié por três vezes).
Pois muito bem. Pessoa das mais conhecidas e queridas na cidade, “dona Detinha”, sempre, ajudou aos necessitados. No último mandato de Lomanto, por exemplo, ela, como Secretária do Bem-Estar Social, não parou de trabalhar em prol dos mais carentes. Crianças, mulheres, idosos, pais de família, comunidades inteiras, é difícil de encontrar alguém da periferia de Jequié que não tenha sido beneficiado pela mão caridosa daquela senhora. Aliás, amor por Jequié e pelas coisas de Jequié, maior que o de “dona Detinha”, é impossível. Muitos comentam na cidade que fazer feira aos sábados sempre foi, pra dona Detinha, uma verdadeira festa (mesmo quando exercia cargo público). Ali, ela passava quase o dia inteiro, fazendo as compras da semana e “proseando” com barraqueiros e feirantes. A identidade com o povo era tanta que, dizem, se candidatasse a prefeita da Cidade Sol, não haveria chapa adversária. Quem seria maluco de concorrer com “dona Detinha”? Fisicamente, ela se assemelha com aquelas “mamas” italianas. Aliás, não é só fisicamente não, quando trabalhei na TV Sudoeste (de1990 a1995), tive a oportunidade de almoçar, por mais de uma vez, com Lomanto Júnior. O velho político, estalando a língua, não se cansava de elogiar as qualidades culinárias da bondosa e benfazeja esposa: “A macarronada de Detinha é uma maravilha. Não tem igual”, afirmação feita mais de uma vez pelo ex-senador da República.
E o dia a dia de “dona Detinha” vai acontecendo sem nada de novo. Fora os preparativos para as comemorações da inauguração do Poliduto da Petrobras, tudo caminhava dentro da rotina. Aliás, por falar na inauguração, as coisas tinham de sair, dentro do planejado. Iria participar da festa muita gente importante. O senador Antônio Carlos Magalhães, o governador Paulo Souto (na época era ele) e até o então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Chega o grande dia. O povo, aos empurrões, se aglomera para presenciar a festança. E lá vem a comitiva: Lomanto, FHC, ACM, Paulo Souto, político de tudo quanto é lado e, caminhando tranqüilamente, a nossa querida “dona Detinha”, com seus mais de cem quilos de bondade. De repente, já chegando ao galpão da Petrobrás, “dona Detinha” escorrega, ameaça cair, bate em um, esbarra em outro, segura dali, agarra daqui e é aquele maior “salseiro”, até que, num esforço “hercúleo” e supremo, ela consegue se equilibrar, ajudada por quem estava por perto. Ainda assim, não evita que se quebre o salto de um de seus sapatos. Alguém do povo, que, com certeza, no passado teria sido beneficiado pela mão generosa daquela mulher, ajoelha-se, agarra a perna dela e, vencendo uma certa resistência, arranca dos pés de “dona Detinha” o calçado danificado. Como se tivesse de posse de um troféu, o homem, aos tropeções, sai em desenfreada e descontrolada carreira. “Desembestado”, diria meu velho e saudoso pai (ele era alagoano). Trinta ou quarenta minutos se passaram. Já instalada na mesa das autoridades e ainda suando pelo esforço em ter que andar na ponta de um dos pés, pela falta do salto, “dona Detinha” começa a se perguntar por onde andaria o seu sapato. Esse pensamento ainda lhe povoa a mente, quando, ela vê, no fundo do galpão, alguém, aos pulos, balançando um sapato (o gesto parecia o de alguém, em dia de carnaval, atrás do trio, balançando os braços, freneticamente, ao som da Banda Chiclete com Banana). Aos empurrões, o “sapateiro” vai abrindo caminho e, explicando do que se trata, consegue, com a permissão dos seguranças, chegar até onde se encontrava “dona Detinha”. Sob os olhares curiosos dos componentes da mesa e de todos que participavam do evento, o homem deita-se no chão (parecendo cena de novela mexicana) e, com ar triunfal, coloca o sapato no seu devido lugar, ou seja, no pé da bondosa senhora, que, extremamente desconcertada e sem jeito, agradece:
– Muito obrigada, moço. Mais tarde acerto com você.
O homem, com um sorriso vitorioso, querendo mostrar intimidade com aquela mulher admirada por todos, para espanto dos componentes da mesa, responde bem alto:
– Vá se f…, “dona Detinha”. A senhora acha que vou cobrar, só pra colar esse saltinho no sapato da senhora?