O velocista sem velocidade

Por Paulo Ludovico

 Corria o ano de 1972. Era Presidente da República o General Emílio Garrastazu Médice. Mais adiante digo o porquê dessa citação. Eu, um ano antes, havia sido Bi-Campeão Baiano de Judô, o que me qualificou para disputar em Maceió, nas Alagoas (terra de meu pai), os Jogos Estudantis Brasileiros. Era uma espécie de olimpíada estudantil, disputada em todas as modalidades esportivas. O desfile de aberturar foi no Estádio Rei Pelé, “Pelezão” (recém construído) e teve a participação das delegações de todos os Estados da Federação. Nós, emocionados e orgulhosos, com a bandeira da Bahia à frente, pisamos na pista de atletismo do Estádio, sob os olhares e aplausos de um público que, literalmente, lotava as dependências daquela praça esportiva. Não sei se foi impressão, mas nossa delegação foi uma das mais ovacionadas. Lembro-me bem, no alto-falante, num som potente e “limpo”, ecoava o Hino da Independência da Bahia, o que nos deixava mais emocionados, ainda. Com todas as delegações, impecavelmente perfiladas no centro do gramado, o discurso de abertura foi proferido pelo Presidente Médice, daí a minha lembrança e referência inicial. Estava também presente o Atleta do Século, que dava nome ao Estádio, o Sr. Edson Arantes do Nascimento, o Rei Pelé. Diga-se de passagem, dois anos antes ele havia se sagrado Tri-Campeão Mundial de Futebol, no México, tendo sido apontado como o destaque daquela competição. Aliás, permita-me fazer um parêntese e lembrar daquele timaço de70, aSeleção Canarinho de Zagalo, que formava com o goleiro Félix, a zaga era Carlos Alberto (o capita) Wilson Piazza, Brito e Everaldo (esse já falecido); Clodoaldo, Gerson e Rivelino; Jairzinho (o Furacão da Copa), Tostão e ele, Pelé. Mas, voltemos ao objeto de nossa conversa de hoje, que não aconteceu no Estádio Rei Pelé, onde ocorreu o desfile dos Jogos Estudantis Brasileiros. Nossa conversa de hoje refere-se a um momento anterior, ou seja, à viagem até o vizinho Estado de Alagoas, mais precisamente à sua bela capital, Maceió.

Eu estudava no Colégio Central, fazia o 1º Ano Científico (hoje, nem sei mais o que é), quando recebi, das mãos do professor de Educação Física (Pimentel, que era preparador físico de equipes de futebol profissional), a comunicação de minha convocação para integrar a equipe da Bahia. Fiquei eufórico e, a partir daí, não pensava em outra coisa. Mesmo porque, começaram os treinamentos de preparação para a esperada competição.  Dali em diante, passei a ter com a “maior moral” no Colégio Central. É que, de cerca de 10 mil alunos do Colégio, só eu havia sido convocado para participar daqueles jogos estudantis. Se não me falha a memória, um outro conquistense também participou, na modalidade Xadrez, o meu amigo Armínio, hoje professor da UESB.

Recebemos os uniformes, aqueles agasalhos de malha, próprios de delegações esportivas. No nosso grupo, além dos judocas estava também, o pessoal de atletismo (os machos e as fêmeas), a equipe feminina de vôlei e a de “handboll”. As meninas do vôlei chamavam a atenção, pela beleza e pela altura. Esse foi um dos dias em que nos divertimos muito. Na equipe de atletismo havia um velocista, afro descendente, que “devia medir, se muito, um metro e meio de altura”, pensei. Diziam que ele não corria nas pistas, voava, de tão rápido. O cabra era tão magro que podíamos contar os ossos do corpo. Ele só tinha costela. Acho até que o corpo é que cresceu, em volta das costelas. Tinha um olho grande e meio estufado, deformidade provocada pela pouca quantidade de carne. Muito bem, estávamos experimentando os agasalhos (homens num vestiário e mulheres em outro, claro). Num determinado momento, olhei de lado e vi aquela figura “esquisitíssima”: um ser de um metro e meio de altura, olhão esbugalhado, cabelo meio “hastafari” e vestindo um agasalho que parecia ter sido feito para aqueles jogadores de basquete. Isto é, deveria, acredito, caber, naquele uniforme, toda a equipe de atletismo da Bahia. Certamente, quem esteve ali presente, jamais vai esquecer aquela cena, uma mistura tanto cômica, quanto trágica. O calção que arrumaram para o “baixinho do olhão” era mais ridículo ainda. Não pelo tamanho, até que era bem curto, mas em função da largura, Acho que se tratou de uma gozação do responsável pela distribuição do material. Se aquele atleta subisse em uma escada, quem viesse por baixo teria uma imagem terrível, ao olhar pra cima. Imagine um sujeito magro ao extremo usando um calção curto e bem folgado, ou seja, ele andando no meio do vestiário deixava à mostra, em baixo, só a natureza. Lembranças terríveis! Claro que posteriormente, em razão de nossos insistentes pedidos, lhe arrumaram um uniforme adequado. No desfile de abertura, ele estava impecavelmente vestido, o que lhe fez ostentar, durante todo o evento, um sorriso vitorioso, apesar do corpo doído. Ah! Esse corpo doído é que merece uma explicação.

O encontro das equipes de judô, atletismo, vôlei e “handball” (esses dois últimos só o feminino) se deu no Aeroporto Luis Eduardo Magalhães, em Salvador (naquela época, Aeroporto Dois de Julho). Às dez da noite, tomamos o vôo e, duas horas e meia, depois, chegamos a Recife. Já havia um ônibus esperando nossa delegação para nos levar a Maceió, num percurso com aproximadamente quatro ou cinco horas de duração (durou seis, mas, para o nosso afro-descendente, a sensação foi de ter durado uns três dias). É que, logo na saída (acho até que o motorista nem havia passado a segunda marcha), o nosso personagem (o velocista, que desfilou orgulhosamente), para sua própria infelicidade, resolve entrar no toalete do ônibus. Infeliz idéia (ou necessidades fisiológicas, numa hora errada). Trancaram a porta por fora, que só é aberta, apesar dos insistentes pedidos, acompanhados de desesperados socos na porta, quando o ônibus estaciona na rodoviária de Maceió. Essa traquinagem rendeu na “vítima” um corpo (pelo incômodo da dormida) prá lá de “moído”. Até hoje, o treinador da equipe de atletismo da Bahia nunca entendeu porque o atleta “voador”, no decorrer da prova, se assemelhava a uma centenária tartaruga. Foi o último a chegar. Um velocista sem qualquer vestígio de velocidade.


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