Em todos os cantos existem pessoas que nascem para um determinado tipo de atividade. É aquela danada da vocação. E tem de ser respeitada mesmo. Muito cabra bom, pensando saber o que quer, às vezes se perde no meio do caminho e, quase sempre, tem de voltar pra se submeter à tal da vocação. Ser comerciante, por exemplo, só para quem tem jeito. Comprar bem, sentir a exigência do mercado e saber vender. Tudo isso é que forma a arte do ser comerciante. Ver o “caboco” (certo seria caboclo) em pé, ali por perto, olhando pra sua mercadoria, e como diz o matuto, tirar uma mira do sujeito, e daí, ter o retrato dele. Vai comprar ou só quer “encher o saco”? Será que é bom pagador? Tem comerciante que bota na prateleira exatamente o que o povo quer. Isso é um dom. Conheço muitos assim. Quando eu era garoto, conheci “seu” Zoroastro Pinto, avô de Zó e Kel. Ele era dono de uma loja que ficava ali na Travessa Lima Guerra. Tinha de tudo. Quem quisesse consertar um ferro-elétrico, faltou peça no mercado, “seu” Zoroastro tinha. E não era só isso, não. Seu Zoroastro tinha qualquer tipo de parafuso (ainda que fosse uma unidade de cada um. Outro assim era João Couto, que ficava no Mercadão. Esse, também, tinha de tudo mesmo. Até galocha (será que alguém sabe o que é isso?) o homem tinha. E por falar em João Couto, ainda esta semana o Aparecido, dos melhores professores de Matemática que já conheci (aquele mesmo de outros casos, já contados por mim), me contou essa de João Couto, o comerciante que vendia de tudo.
Um certo dia, há alguns anos, um vendedor (aliás pense bem, vender de porta em porta, é ou não é só pra quem tem vocação? Se for vendedor de livros, aí meu amigo, nem se fala), pois bem, um vendedor chega a Vitória da Conquista e quer passar adiante uma mercadoria, dessas de pronta entrega. O homem carregava com ele 50 berimbaus, aquele instrumento musical (coisa de capoeirista ou peça de decoração na parede de carioca e paulista que visitaram a Bahia). Como agir? Onde iria vender 50 berimbaus em Conquista? Turista carioca e paulista, só em Salvador. Não poderia desistir. Tinha de fazer dinheiro pra pagar o hotel e voltar pra casa. Andando pelas ruas da cidade, informaram a ele que se alguém fosse comprar seus 50 berimbaus, esse alguém só poderia ser João Couto. E pra lá foi o homem com aquelas flechas e cabacinhas, a tiracolo. Entra na Loja de “seu” João Couto e oferece:
– Bom dia “seu” João.
– Bom dia! Responde o comerciante. E o vendedor continua, sem dar tréguas:
– Tenho o que o senhor precisa, berimbaus genuínos, fabricados por mestre Babau (inventa o nome, ali na hora), aluno de mestre Pastinha (esse existiu, foi aluno do lendário mestre Bimba), lá de Salvador. São “só” 50 unidades. Uma pechincha!
Seu João responde, na bucha:
– Berimbau, o quê moço! Lá eu preciso de berimbau? Quem vai vender isso aqui? Isso é mercadoria pra quem mora em Salvador.
Vendo a segurança de “seu” João, o vendedor não insiste, mas acabara de ter uma idéia que poderia dar certo. Sai dali e logo coloca seu “maquiavélico” plano em prática. Promete dar uns trocados a algumas pessoas da cidade para que, nos próximos sete dias, entrassem na loja de João Couto e procurassem berimbau. E assim foi. Durante uma semana, pelo menos duas vezes por dia, “seu” João passa a ouvir a pergunta:
– Seu João, preciso de um berimbau. O senhor tem?
Depois de certo tempo, o comerciante, já estava arrependido de não ter efetuado a compra do tão solicitado produto. Pensa até em ir a Salvador, adquirir o danado do berimbau. Compraria vários, até na mão de Mestre Pastinha, se fosse o caso. Pra sua “sorte”, num belo dia, aparece aquele vendedor, e o que é melhor, com quase 100 berimbaus. Não dá outra, mal viu o rapaz, “seu” João diz:
– Rapaz, você caiu do céu! Quero comprar todos os seus berimbaus.
– Os cem? Pergunta o vendedor de berimbaus, um pouco assustado.
– Sim. Os cem!
Fizeram o negócio Mercadoria entregue. “Agora sim”, pensou seu João. A loja estava preparada. Podia aparecer comprador de berimbau, aos montes. Havia berimbau de todo jeito, de tudo quanto era cor e de todo o tamanho. A arrumação na loja fazia inveja às arrumações do Mercado Modelo, em Salvador. A loja de seu João estava colorida, colorida (a repetição é proposital, tal era o “colorimento”).
Um dia, e nada de venda. Dois dias, nada. No terceiro dia, a mesma coisa. Parece até que ninguém mais queria berimbau na cidade. E assim foi. Já eram passados quase três meses e os 100 berimbaus estavam ali: na prateleira, na parede e em todo lugar na loja. Não havia vendido um, sequer.
Certo dia, já muito tempo depois (“seu” João já nem se lembrava de seu estoque de berimbaus), a Região atravessa uma crise no fornecimento de açúcar. Briga entre o governo federal e os produtores de cana-de-açúcar, naquelas questões da produção de álcool etc. Em Conquista, só um comerciante tinha o produto, com fartura. Justamente quem? “Seu” João Couto.
Naquela época, quem porventura passasse em frente ao mercadão, via uma placa na fachada de uma determinada loja.
“Só vendemos açúcar a quem comprar um berimbau”.
O professor Aparecido jura ter sido esse caso, verdade.