Pílula de Nova Casa, Novo tempo

Por Marco Antônio Jardim

Pessoas mudam de ideias e roupas. Eu fico a tentar mudar os hábitos, mover a casa. Com destemor, peito aberto, sem deixar a coluna arquear ao carregar móveis, pequenos objetos e as boas impressões que a memória há de conservar. Na madrugada, perto da noite, sem medo de amar um novo tempo e ordem, abrindo caminhos, portas, janelas, mudando as coisas que podem ser mudadas, transformando o deserto de ideias da velha moradia em coisas da alma. Em certo momento, já noite, ao lado do entardecer, sentindo o vento no rosto, sentei numa almofada e contei estrelas em despedida. Não sei mais nem menos da vida, mas sei que ela existe e que já era a hora, desde o meio dia em pleno sol, de por tudo em outro lugar. Fiz meu silencioso ritual de separação dos cômodos vazios e recantos escuros, da rua inquieta, de pessoas e sombras que me vigiam dia e noite, da habitação mais cara ao coração, e transformei. Desci a rua do poeta e subi a 1º de Maio na manhã que seguiu ao dia seguinte. Por onde estou agora a morar, a sintonia toda é aquela que eu devia mesmo esperar. A da estranha sensação de pertencimento. Ou, como previu Sarytta, estou indo a novo rumo, novo tempo, novo alvorecer surgindo. Na composição da travessia, só me despedi, afinal, do reflexo das coisas. Do aceno fugidio na plataforma, a estação por inteira é mesmo a vida. E meu tempo, nela, é quando. A velha casa, portanto, não me segue mais. O novo tempo é o que basta, além do cool jazz. É tudo tão recompensador, diante deste inspirado compositor que é o tempo.

Posso ver o céu azul da ampla janela do meu quarto e um horizonte tão vasto que mais parece que vejo o mar. É de lá que fito e saudo o infinito. Meu quarto é um rito de corredor arejado, sofá colorido, revisteiro de Paris, um closet, uma mesa de estudos, objetos que contam histórias e um espaço para praticar yoga ao lado da cama de casal. Tudo está tão no seu devido lugar quanto o barulho da água e do ar. A luz corre, inteira, por uma das salas, e se faz indireta até a orquídea sobre a peça de madeira marrom. Há livros por toda parte. De Khaled Hosseini a Ernest Hemingway, de Voltaire a Kardec, e outros títulos que bem sei. Há quadros em todas as paredes, pintados pelas mãos de minha mãe. Há janelas, vitrôs e frestas por todos os lados. Há mais janelas que todas as que há no mundo. E a gente se ilumina com os dias que chegam de fora pra dentro, por vezes em matizes de azul profundo. E a gente serena quando a tarde cai no tempo. Eis que o tempo, enfim, venceu.

Enquanto isso, à nossa volta, as vozes de Marcela e Milena, crianças brincando de bola no village, gente caminhando sem pressa, famílias, sons de pássaros, uma jaqueira e um limoeiro. Pelas redondezas há mercado, marcenaria, lojinhas, padaria. Uma venda de frutas e verduras, um bar e uma praça onde levo o cão pra passear. Como num subúrbio de riqueza imaterial, se pudéssemos ter a fugacidade para ver tudo, mais bem que mal, de fato sentiríamos tudo. A velha casa já cede lugar, já se desfaz, como vislumbre ou vaga lembrança a outros silêncios mais e ao olhar embevecido neste novo lar que fica lá detrás do mundo. Ademais, a velha casa já era monte de tijolos moribundos sem pretensão, fechando as portas do meu coração. Agora, ela é um espaço vazio, com um só habitante solitário que nada possui. Sem anseios, sem movimento. Adeus velha casa. Feliz novo tempo.


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