Texto e fotos: Mariana Kaoos, O Rebucetê
Plano piloto do planalto central. Semáforos funcionando regularmente, poucas pessoas andando nas ruas. Dia claro, por volta dos 25º. Brasília comporta a maior frota de carros novos do país. Suas ruas largas absorvem os mais variados tipos de veículos. “Essa cidade não foi construída para transeuntes”, assim comenta alguém que anda rapidamente. Os passageiros, com pressa, parecem não perceber a existência alheia, compromissados com seus trabalhos, suas rotinas. A bandeira nacional balança com o vento norte, a tocha que foi acesa na criação da cidade, ainda queima aos quatro ventos dando a parecer que sempre será assim.
Para os desatentos, os que colocam fones de ouvido e não olham para o lado, para os que acompanham tudo pela televisão, parece que o dia 19 de julho foi apenas mais um no cotidiano de uma grande metrópole brasileira. Triste engano. Logo nas primeiras horas do dia, mais precisamente às 4 da manhã, o Ministério do Planejamento foi ocupado pelas três categorias da educação (professores, estudantes e técnicos administrativos) que estão em greve há pouco mais de dois meses. Das universidades federais brasileiras 95% estão na luta por melhorias. Dentro das principais reivindicações estão o financiamento público, plano de carreira e 10% do PIB. Entidades como a CUT (Central Única dos Trabalhadores), oposição de esquerda da Une e Anel, estão acampadas próximas ao Palácio da Alvorada, centro do poder brasileiro. Ainda não há perspectiva de saída.
Algumas horas depois, enquanto o Governo ouvia os grevistas na tentativa de estabelecer um possível acordo, estudantes de comunicação vindos de todos os cantos do Brasil se reuniam para elaborar palavras de ordem. Nesse mesmo dia, 19 de julho, aconteceria o ato público pela democratização da comunicação, principal bandeira do 33º Encontro Nacional dos Estudantes de Comunicação, Enecom. A percussão foi na base do improviso. Sucatas, galões de água servindo como tambores. Os “cara pintada” desenhavam mãos uns nos outros, escureciam os olhos, buscavam referencias genuinamente brasileiras afim de protestar, de ter cara de povo e de lutar por ele. Por volta das 15 horas, mais de duzentos manifestantes saíram do alojamento da Universidade de Brasilia, UNB, em direção ao Ministério das Comunicações para entregar uma carta redigida pelos mesmos que pautava exigências como um novo marco regulatório nas comunicações, mais pluralidade de vozes na grande mídia, a criação de rádios comunitárias dentre vários outros pontos.
Eu organizo o movimento, eu oriento o carnaval.
Desde pequena sempre tive um gosto muito grande pela história. Era a minha matéria preferida nos tempos de colegial e ainda hoje, procuro me manter próxima a ela. A história me encanta não apenas pela possiblidade de estudar povos, estruturas organizacionais e culturas de diferentes localidades, mas principalmente por me oferecer a possibilidade de estar presente nela, modificando-a, enaltecendo-a, fincando de alguma forma as minhas bandeiras pessoais e coletivas de luta.
Muito provavelmente, daqui a alguns anos terei meu primeiro filho. Ele irá crescer, ter curiosidade pelo mundo, querer saber das coisas, das cores, de si. E quando o meu filho começar a estudar, a ter contato com a educação alheia, aquela que não será dada por mim e sim oferecida por instancias de trabalhadores e do governo, eu espero que ela já tenha sanado todas as deficiências que hoje são agravantes na minha educação.
Para que isso aconteça, compreendo que o momento de partir para a luta é justamente agora. Mesmo não militando mais dentro do movimento estudantil, na tarde de 19 de julho, vesti minha blusa de rebuceteira, pintei o rosto, coloquei a câmera no pescoço, preparei a voz e parti em direção ao ato público a fim de gritar pelas minhas crenças e convicções. Os problemas técnicos assustaram a todos inicialmente. Apenas três ônibus estavam disponíveis para nos levar ao local desejado e, de fato, nem todos estavam realmente comprometidos com a causa. Mas, como a vibração e o desejo tem que partir de cada um, acreditei em mim mesma e fui, com os tropicalistas na cabeça, repetindo baixinho, como se fosse uma prece, uma música de Caetano Veloso.
Do meu lado esquerdo tinha uma sergipana do coletivo Barricadas, na militância há três anos. Do outro, uma artista plástica, nascida em Pernambuco, atuante no coletivo Levante e futura comunicóloga. A minha frente, partidários do PSTU, do PSOL, apolíticos, “esquerdistas paz e amor” e pelegos*. Todos, apesar de diferentes perspectivas políticas estavam juntos (de braços dados ou não), entoando o refrão “poder para o povo, para construir um mundo novo”. Meus braços, fixos, segurando a câmera, se arrepiava a todo instante, não pelo frio, mas pela emoção do momento. A força de um quando se une com a do outro vira algo extremamente tocante, comovente. Dá forças para seguir em frente, para lutar e principalmente para acreditar em mudanças sociais que só são possíveis através da força popular.
Representantes do Intervozes, do Movimento dos Sem Terra estiveram presente, apoiando a nossa causa, brigando pelas mesmas coisas que nós. Com a bandeira da Enecos na frente, a percussão ao meio e o carro de som atrás, finalizamos o percurso na rodoviária de Brasília, por volta das 18h: 30 min. Agora já sem o carro de som, interagimos com as pessoas que embarcavam e desembarcavam nos ônibus que os levariam para outros cantos do plano, bem como para as cidades satélites. Através de jograis, o ato publico, magistralmente, finalizou-se com o povo falando para o povo. A comunicação se deu da maneira como deveria ser, popular. Partindo do pressuposto de que Raul Seixas estava certo ao dizer que “sonho que se sonha junto é realidade”, o ato pela democratização da comunicação, mesmo com pequenas falhas ao longo do trajeto, foi concluído não com uma vitória plena, mas com a satisfação em saber que nós fomos ouvidos, assistidos e reverberados.
Enquanto o dia 19 de julho para muitos foi mais uma repetição do cotidiano, para mim foi história. Presente traçado e história modificadora de uma realidade e contexto especifico, assim espero. Que eu não precise de um ato publico a cada ano para atiçar a minha vontade de luta. Que ela seja diária, abarcando os mais variados tipos de companheiros, me compreendendo como povo, estando com ele e lutando por ele. Espero que daqui a alguns anos, o meu futuro amado filho possa desfrutar de uma comunicação popular e de uma educação de qualidade, que o faça ter outros tipos de percepção. Se isso acontecer, sei que será graças a todas essas manifestações sociais que andam ocorrendo e a todas essas pessoas que estão inseridas nela. Para agora, além do cansaço, fica a fé e o apelo de agregação na luta. Para o futuro, uma saudação da mais honrada possível ao dia de hoje.