Um problema de solução prática

Paulo Ludovico 

Já contei, aqui, alguns casos de quando, lá pelas voltas de 79 ou início de 80 (do século passado), morei em pensionato, em Salvador. Nunca me esqueço de minha chegada á capital do Estado, quando, eu e meu irmão, carregados de malas e de caixas de biscoito, carne de sol, goma de beiju e os cambaus (matuto do interior é sempre assim, acha que na cidade grande não tem nada), tivemos de enfrentar 15 andares de escada. É que os elevadores do prédio (todos os três) estavam com defeito. Já até contei essa aventura “alpinística”, num desses casos passados. Quem passou pela experiência de morar em pensionato, dificilmente vai se esquecer das coisas que se “assuscederam” ali. Tive alguns companheiros que, vez por outra, me vêem à lembrança. Domingão, Tidão, Levi (o da carne de sol), Raimundo Baiano (velho flamenguista) e o inesquecível Hermison (já contei alguns casos dele) Pois bem, nossa história de hoje (“verdadeiríssima”, eu estava lá) refere-se à vida de pensionato. Antes de começar o caso propriamente dito, tenho de situar você, que lê essas linhas, no ambiente em que ele aconteceu.  

Morávamos num pensionato onde acontecia de tudo. Existiam sempre dois grupos: os brincalhões (autores das brincadeiras) e os outros (alvo das brincadeiras). Vez por outra, apareciam nós (apertadíssimos) em pernas de calça. Pra desatar tais nós, que tinham o nome de “jabá” (não sei o porque), era um “deus nos acuda”. Em muitos casos, chegava-se a perder a calça. Tinha de ser transformada em bermuda. Era um ambiente de muitas brincadeiras, trotes e algumas rusgas. Recordo-me de um jequieense que tinha o apelido de Zé Gaveta (não sei o porquê e nem me lembro o nome dele). Esse era um dos mais gozadores. Zoava de tudo e de todos. Com a presença de Zé Gaveta eram sempre agradáveis os encontros que tínhamos na sala de visitas, após o almoço. Onde dormíamos, havia um relógio de parede que nos norteava quanto a horário de escola, para uns, e horário de trabalho, para outros. Invariavelmente um de nossos brincalhões, na calada da noite atrasava ou adiantava o relógio em 1 hora, principalmente quando chegava novo hóspede. “É pra batizar o danado”, justificava. Ainda meio que dormindo você ouvis comentários assim:

– Pô! Acordei uma hora antes, ou

– PQP! Estou atrasado, ou ainda.

– Quem foi o FDP que mexeu no relógio?!!!!

Pois muito bem. Era nesse clima que vivíamos naquele pensionato em Salvador, que ficava nas Ruas Areal de Baixo, nº 7 e na, Areal de Cima nº 36.

Na época em que aconteceu esse caso, morávamos, eu e mais dois colegas, no mesmo quarto. Havia dois beliches. O nosso protagonista era um sujeito mediano, magro de tal maneira que os ossos ficavam à mostra. Orelhas grandes e abertas. Às vezes pensávamos que ele não tinha orelha, eram as orelhas que tinham ele. O apelido de Lebre (adequadíssimo, diga-se de passagem) foi autoria do velho Zé Gaveta. Em muitas ocasiões, para zoarmos com o danado, dizíamos que se ele ficasse em pé e imóvel, numa esquina, certamente a companhia telefônica instalaria um telefone naquele orelhão de que era possuidor. As reações dele dão pano pra outros casos.

Lebre trabalhava a semana inteira, mas aos sábados o negócio era curtir a noite. “Ninguém é de ferro”, dizia. Só chegava altas horas da madrugada e bêbado. Com dificuldades, dado o alto estado alcoólico, preparava-se para dormir (necessidades no banheiro, pijama etc.). Subia no beliche, na maioria das vezes, ajudado por nós, e, ato contínuo já estava roncando. Um ronco assustador, diga-se de passagem.

Até aí, tudo bem, o problema era que o nosso artista era um inquieto na cama. Sóbrio já era assim, imagine bêbado. De tanto se mexer, Lebre terminava caindo do beliche (daquela altura) e, embriagado, só fazia rolar pra debaixo da cama, onde dormia até o dia seguinte. Ele dizia sempre acordar com dores no corpo (do tombo, certamente). E assim vivíamos. Todo sábado era essa mesma história, bêbado, queda, acordar debaixo do beliche e corpo doído.

Certo dia, nosso desastrado colega chega, apresentando um avançado estado de embriaguez. Trôpego, mal conseguia andar. Cantava alto e fazia barulho ao esbarrar nos móveis. Só ouvíamos os “psiu” dos cômodos vizinhos. Ele entra no quarto e calmamente, com aqueles gestos descoordenados, de quem está sob a forte influência do álcool, prepara-se para se entregar aos prazeres do sono. Nós já aproximávamos para ajudá-lo a subir no beliche. Lebre, naquele movimento de balança, mas não cai, diz, com a mão em riste: “não preciso de vocês”. Ficamos intrigados. Como se não estivéssemos ali, ele se deita no chão, rola pra debaixo de beliche e, antes que começasse o ronco, nos diz, com aquela voz de bêbado:

– Já que vou cair mesmo, fico logo debaixo da cama.

E continuou, com a mesma voz:

– Pelo menos, eu não vou sentir dor amanhã.

Disse isso e dormiu.


Uma Resposta para “Um problema de solução prática”

  1. Nino

    Muito bom, ainda bem que eu nao tenho beliche p cair kkkk

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