Coração de eterno flerte

Por Mariana Kaoos, O Rebucetê
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Essa é uma das tantas falas emocionadas da cantora Maria Bethânia no seu DVD chamado “Tempo Tempo Tempo Tempo”, em que ela faz uma homenagem aos seus 40 anos de carreira. A música em questão se refere à “De Manhã”, primeira composição do artista Caetano Veloso e lançada logo no início da década de 1960 na voz da irmã. Nessa gravação específica, a melodia toma espaço como plano de fundo. A voz rasgada de Bethânia ecoa por toda a canção rememorando o real significado de suas palavras. É realmente possível imaginar o cenário da música, bem como sentir parte de todos aqueles sentimentos que, supostamente, estiverem presentes na sua criação.
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Meio que como num encaixe de coincidências, no último domingo, cinco de agosto, Caetano Veloso cita, em sua coluna semanal para o jornal O Globo, justamente a música “De manhã”. Ao analisar o novo disco de Tom Zé, o “Tropicália Lixo Lógico”, ele traça para si mesmo um paralelo entre a tropicália e seus desejos, condutas e escolhas perante o movimento. Nessa coluna ele afirmou que “Quando compus ‘De Manhã’, embora me tivesse deixado levar pelo modalismo nordestino (tão em moda sobretudo por causa de Edu Lobo), eu mais resignei-me a aceitar essa tendência do que a achei dentro de mim. Ao contrário, eu queria poder ter feito algo que mantivesse a natureza do samba de roda, nunca modal, sempre pensado em termos de tônica/dominante/subdominante”. No fim, deixa-se confessar, “o modalismo de ‘De Manhã’ me aparece mais entranhado do que eu supunha. E eu o encontro mais próximo da Tropicália do que sempre cri”.
Quarenta e sete anos após a primeira gravação de “De Manhã” (a primeira foi em 1965), foi a vez Marcelo Camelo dar a sua interpretação para a música. Utilizando-se bastante de instrumentos de sopro, a versão do ex Los Hermanos para “De manhã”  traz uma nova roupagem para os sentimentos que circundam a composição. Talvez melancolia. A música acabou se tornando muito intimista, com características peculiares do músico, como a entonação da voz e a presença marcante do baixo. Na verdade, a iniciativa de Camelo de regravar a canção partiu do projeto do disco tributo em homenagem aos 70 anos de Caetano Veloso. O tributo, que será lançado hoje, no dia do aniversário do artista, conta com a participação de músicos de todo o mundo, como, por exemplo, o grupo Magic Numbers que interpretou “You don’t know me”, faixa de abertura do disco “Transa”, de 1972 e a americana Chrissie Hynde, que junto com Domênico, Lancelotti, Kassin e Moreno Veloso, traz uma nova versão para “The Empty Boat”, lançada originalmente no disco “Caetano Veloso”, de 1969.
Outros astros lhes são guia
Caetano não é fácil. Considerado por muitos como narcisista, se auto denomina pretensioso. Muito amigo de Nara Leão, se opôs e ficou no hotel, junto com ela, em 1967, quando ocorreu pelas ruas de São Paulo a passeata contra a guitarra elétrica. Sempre foi visionário. Apaixonado por cinema, deixou diretores como Godard e Antonioni influenciarem diretamente na suas obras. Chegou a rodar um filme. Com uma super 8 dirigiu “O Cinema Falado”, em que compila suas crenças e convicções a respeito da sétima arte. “As questões que ele suscita dentro e fora do seu próprio âmbito são pertinentes ao diálogo que mantenho com quem quer que acompanhe o andamento do todo do meu trabalho”, desabafa, meio irritado com as criticas que recebeu. Irritado? Na verdade não. Caetano, pela sua própria magnitude, sempre esteve muito acima das críticas que obteve ao longo da sua carreira. A sua obra parece retroalimentar-se de si mesma o tempo todo, gerando novas estéticas que se validam com o externo, mas desembocam no que produz.
Caetano começou sua carreira na década de 1960. Primeiramente, levando Bethânia ao Rio de Janeiro, para contracenar com Zé Kéti e João do Vale na peça “Carcará” no Teatro Opinião. A partir daí, se enveredou pelos caminhos dos sons. Em 1967, participou do III Festival de Música Popular Brasileira, na TV Record, com a música “Alegria, Alegria”, que mais adiante, em seu livro intitulado “Verdade Tropical”, deixa-se confessar que ela não passava de uma marchinha antiga e careta e que fazia menção a “A Banda”, música de Chico Buarque. Em 1969, no mesmo festival, foi vaiado ao exibir “É Proibido Proibir” e ao discursar para a juventude da época que eles não sabiam de nada. “Vocês não dão pra entender. Mas que juventude é essa? Que juventude é essa? Vocês jamais conterão ninguém” . No fim do discurso, ainda muito revoltado, deixa-se acrescentar: “Se vocês forem… se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos! Me desclassifiquem junto com o Gil! Junto com ele, tá entendendo? E quanto a vocês… O júri é muito simpático, mas é incompetente”.
Pronto. A confusão estava armada e a tropicália também. O nome do movimento surgiu através de uma obra do artista plástico Hélio Oiticica. Já as ideias, de figuras como Caetano, Gilberto Gil, Torquato Neto, Décio Pignatari, Os Mutantes, Tom Zé e tantos outros pensadores que surgiram na época. Tinha influência direta do concretismo paulistano, com Augusto e Haroldo de Campos a frente, da pop art, do movimento antropofágico de Oswald, lançado no inicio do século XX e da Nouvelle Vague francesa. Suas características e peculiaridades são estudadas até hoje. O tropicalismo é considerado um dos movimentos culturais brasileiros de maior força em todo o país e Caetano o seu filho preferido.
Sim, muitos alegaram que o movimento se perdeu, se vendeu. De fato, o tropicalismo ao longo do tempo foi modificando, se tornando pop, vendável. Se a intenção era essa desde o início ou não, são reflexões a parte. O que realmente importa, é que Caetano seguiu sua carreira, se aventurando por caminhos ainda não explorados como a incorporação de ritmos e poetas em “Transa”, disco de 1972 que fez quando estava exilado em Londres. Transa foi produzido pelo também cantor Jards Macalé, o que rendeu um produto de altíssima qualidade. Outro exemplo pode ser o “Araçá Blue”, de cunho totalmente experimentalista e lançado em 1973. Caetano relata ter feito o disco sozinho, num estúdio. Araçá blue teve um grande número de devoluções, sendo tirado de catálogo e relançado apenas em 1987.
Se inúmeros artistas da música popular brasileira acabaram por deixar suas obras muito parecidas, oferecendo ao público um repertório “mais do mesmo”, que se configura em estéticas sempre iguais e uma reprodução do que já foi feito, Caetano inova na hora de agregar novos valores à sua essência e unir isso na hora da criação. Pós-moderno? Analisando de diferentes perspectivas eu diria que sim, contento identidades fragmentadas por toda a sua carreira, mas, se diferenciando no que diz respeito a sua essência. Caetano Veloso é por natureza um provocador, que leva o público a refletir através do que produz e mais ainda do que agrega.
Hoje, Caetano completa 70 anos. Muito provavelmente deve está acontecendo comemorações em Santo Amaro, cidade onde nasceu, como em todo o resto do Brasil. Aqui, meu vizinho que sempre escuta Pink Floyd, resolveu colocar hoje, na maior altura, diga-se de passagem, “O Samba e O Tango”, música que abre o disco “Fina Estampa Ao Vivo”. A primeira vez que ouvi Caetano foi em 1998, logo quando ele lançou “Livros”. A faixa 9 do disco, é o poema “O Navio Negreiro”, de Castro Alves, musicado por ele e com participação de Maria Bethânia. Na época em que o ouvi pela primeira vez, tinha oito anos de idade e foi o primeiro grande poema que decorei. Naquele momento, mesmo sem ter total consciência, Castro Alves tinha entrado de vez para minha vida e Caetano, talvez, ainda mais. Quatorze anos após o primeiro contato, eu o saúdo no dia de hoje, pela sua obra, pela sua genialidade, pela sua capacidade de ser agente modificador reflexivo no dia a dia das pessoas. Narcisista ou não, Caetano é um dos maiores expoentes da música brasileira e seu aniversário deve sim, ser comemorado com pretensão.
“Discretamente, no Verbo. Quero que todo mundo que gosta de mim de verdade fique sabendo que eu quero ficar mais tempo na Bahia que em qualquer outro lugar. Quero, se possível, trabalhar aqui mesmo e só sair pra dar umas olhadas aqui e ali. Era o que eu queria fazer desde sempre. Eu gosto mesmo é daqui da Cidade do Salvador. Quero que todo mundo saiba que eu continuo achando João Gilberto o maior artista brasileiro e que tudo mais vá pro inferno. Beijos”.
Caetano Veloso em entrevista ao Verbo Encantado, Salvador, 1972.

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