Oscilações positivas no universo. Pela primeira vez, estou em meio e acima das nuvens. Observo e anoto, da janela do avião, para loucos que são felizes. Que escutem os desordenados, amotinados, criadores de caso. Os de corpo leve, harmônico e sensível. Corpos redondos em espaços quadrados. Mas, para mim, só leveza nesse espaço aéreo, e torpor na aterrissagem dos pensamentos. Nuvens, para mim. Agora mesmo, escrevo, etéreo, sobre elas. Montanhas de neve flutuantes que nunca antes vi. Mar de espumas em reflexo ao céu. Matizes de branco num convite ao mergulho das ideias todas. Um mar tão sem tempo ordenado que parece estacionado. Tão imenso e alvo que meus olhos fecham e marejam sob azul. Aqui estou eu no céu. Neste tempo, perdoem-me os céticos, a ordem é Deus. Não preciso findar para ver Deus. Confesso que pareço bobo, como todas as crianças que ainda sabem ser. Ainda que definam tempo determinado, melhor é o som e o silêncio que passam por mim. Deixo, no ar rarefeito, minha caligrafia em rimas simples e versos soltos. Como um haikai de beleza contida que, do céu, olha todo o mundo, mas, no fundo, está só. Soltos estão meus braços, pernas, tronco e cabeça. Respiro.
Suspiro aliviado e afundo meu corpo ao teto do chão. Fecho os olhos para ver a imensidão das coisas límpidas de um jeito diferente. E penso distinto, porque, agora, sou o passageiro da galáxia. E, como tal, não sou tão fã de regras. Sou fã do amor líquido, mensageiro. Em meio ao festim das nuvens, amo por inteiro. Nessa atmosfera menos espessa, as pessoas e memórias me escapam às mãos. As devolvo ao tempo, troco-as por mercadorias de afeto, mas só porque estou suspenso. Quando pouso, entretanto, ainda amo. Escuto “got to be there, got to be there in the morning” no aeroporto e meu sonho volta a bater na antiga porta de Delfos, sob placa de seiva bruta. Furta-me o ar, agora denso, e a cor é cinza. “Hello, world”, ainda ouço. Sim, estou em São Paulo. Vista do alto é quase chumbo.
“Mergulhe no oceano de si mesmo em São Paulo”, li no devaneio bêbado de Guarulhos à Marginal Pinheiros. O verde das árvores tem tons prateados. Apenas algumas flores de figueiras, chichás e copaíbas quebram a monotonia do concreto. Abro os olhos, feito asas de borboleta, e vejo a fauna paulista a louvar, destoar e imitar o meu próprio olhar. Meu gesto de mãos e boca é aspirina, o indefectível cigarro e o exercício do senso de observação. Black powers com headphones, peruas estilizadas, workaholics de terno slim, piriguetes urbanas, street artists, ciclistas, taxistas judeus, um batalhão de orientais, usuários de crack, gays de enormes óculos escuros, hare krishnas, línguas estrangeiras, hordas de expressões distantes, corriqueiras, paulistas. Todos entre branco e preto, sob chuva interminável. Antes da tempestade, uma lacuna de tempo. Mente quieta, corpo aquecido, sou, fora de mim, pertencente a esta tribo tártara, povo nômade. Estou longe de Atitlán, o local onde o arco-íris ganha tardes gris. Alô Paulista, eis meu amores. Porque são eles que mudam as cores vistas de mim no miolo da cidade que não tem fim. Gestos magnéticos, simbólicos, até criam, inspiram e curam. Minhas mãos sobrepostas sobre eles. Porque são eles que impelem minha força à frente até o coração do Ibirapuera. Uma cidade dentro de um parque e meu coração recipiente, pleno e profundo, em estado de yoga, em oferenda de energia, feito arranha-céu de concreto e vidro na capitania. Tão alto que minha aura pode até andar. Numa das mãos, um escudo antitristeza. Noutra, uma tela em branco, uma obra de arte do Masp, uma energia criativa, um mantra da paz. Eu, inteiramente templo de silêncio, ouvindo uma canção que nunca antes foi composta. Om Shanti Om na Avenida São João. Meus dedos logo tocando os raros lapsos de céu azul em resposta. Ali entre as antigas igrejas, estações, pontes, túneis escuros, grafites, pop art, velhos sobrados e a Pinacoteca do Estado. Há cheiro de poesia e comida tailandesa no ar do labirinto místico. Apesar do pesar, meu olhar vigia São Paulo. Do nono andar do Quality ou do subterrâneo do Metrô. Da esquina da Augusta à Consolação. Do Eldorado da Faria Lima ao posto da solidão. Contemplando a beleza tardia de uma das maiores cidades do mundo, sei que o sol, um dia, há de morrer. Existe amor em SP? Na lápide da efeméride da vida, jaz o sol. Em volta da opressiva paisagem sem fim é até possível ver luzes e calor, mas estou em São Paulo. Vejo cinquenta tons de cinza, mas não sou. E agora jaz o sol e o som. Jaz a soberba malha fortaleza, a quem rodeia pela parte dos Jardins e do Ocidente. Fico breves instantes em silêncio contente. O olhar marejado no físico fatigado pela poluição. Sim, São Paulo é um buquê que anseia respiração. Profunda e silenciosa. A cidade em feriado nacional. Este é meu pranayama, minha flor de lótus. Celebrando, no rio morto terroso, ladeado de heliportos, Nossa Senhora da Conceição. É a imposição das cinzas no tom da dor na margem das minhas costas. Tom maior azul celeste com pontos luminosos, subindo o dorso feito estranha saudade urbana. E do meu caminhar flutuante sobre a esteira do metrô, vendo a luz na fresta das folhas passar, o ar passa. No vasto formigueiro, cada movimento meu cria asas secas de cigarras na raiz. Cria razão e emoção. Amplia o ângulo de minha visão. Se não sou, de estilo ou referência, minha ciência do espírito está sendo sim. Non ducor, duco. Eis meu espírito compreendendo, aceitando, transformando. Oh, São Paulo, pureza do zen, sou seu humilde criado. Eu, sikh, curvo-me perante ti. E, por ser amor, toma e finda. São Paulo em mim é cinza.
Uma Resposta para “Pilula Cinza – Número 54”
Cássio Montalvão
Marquinho, cada vez mais plural e antenado cronista, um alguém para além da província.
Sinto prazer em assistir ao que por você é grafado, e ler o que em você tem sentido.
Grande abraço e curta a ‘paulicéia’, desvairadamente…
Ah, recomendo aventuras satyrianas pela Pça. Roosevelt, depois das 20:30 de um dia qualquer.