Rio da Pílula – Número 56

Por Marco Antônio Jardim

Acordei. O toque de alvorada me tirou de um sonho luminoso. Nem por isso estava sobressaltado. O cômodo, gentilmente emprestado a mim por Ana Clarinha, era de um tal silêncio de ouro que esfreguei os olhos pacientemente, antes de encarar a luz da manhã que invadia o quarto pelas cortinas em tom de bege. Das fisgas de luz na janela do nono andar do Casablanca, o céu manipulado do Rio. Azul, com um clarão de espanto tão intenso que parecia puro, não real. Deitado, no tempo destes poucos dias demorados, posso concordar que, sim, a solidão é azul, tal qual a tela de minha mãe, em cena de rua, com arvoredo basto como as de Niterói, mas com o solo cheio de neve. Ou azul ultramarino, como o da mulher que lê uma carta no célebre quadro de Vermeer.  No quarto, até o fogo silenciaria. Levantei para me acostumar ao dia. Dessa vez, como de costume em todo o ano, o som irritante do despertador não precisou ser ativado. Despertei os sentimentos. Coloquei “Warrant”, do Foster The People, pra tocar baixinho. Na sacada, acima do movimento da Gavião Peixoto, o reflexo do sol em minhas mãos. Eu parecia, não pálido, mas caucásico, límpido e jovem no Rio. Meu rosto, com os olhos ainda semicerrados, parecia mais belo, como que visto sob a névoa ensolarada do avião.

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Um rosto difícil de entender, mas acordado do habitual letargo dos longos meses. Em meio tempo, com um filme fotográfico do Pão de Açúcar na mão, recordei cenas da viagem de sonhos até ali. A viagem desse velho que se conta em um ano. Em Confins, franciscanos contrastando com rastafáris. Os primeiros dormindo nos cantos do saguão, os outros dormindo de olhos abertos. Ambos convergindo em sono, sotaque mineiro e leitores eletrônicos. Vi, ao vê-los, mariposas de variadas formas e cores. Levitei sobre a cidade, recobrei os sentidos e, outra vez, acordei. Esfreguei os olhos novamente, esperando outro vôo, vesti um agasalho verde-musgo e olhei em volta. “A vida muda para quem muda”, pensei. Muito difícil, como os velhos hábitos impõem, não tender a recordar Jhon, à revelia da frase de banheiro: “patéticos mineiros”. Decidi, em Viracopos, organizar minha alcova, meu pequeno mundo, minha mais completa zona de conforto e proteção. Lá as pessoas fumam bastante. Comumente sozinhas, sem questionar a abordagem de que cigarros são, de fato, companheiros, ainda que nem tão comezinhos quanto seu curto tempo. Lá vendem livros de esperança no hall de entrada. Foram horas de espera entre um cigarro e outro, lendo e vendo.

Horas de profundo alívio, na expectativa de que os dias não passassem, ou que, pelo menos, andassem desejando parar. Só assim pude exercitar o olhar sobre encontros e desencontros das conexões no gigantesco, assombroso e algo que mal administrado aeródromo da vida que a gente tenta inventar. Foi num aeroporto que eu vi, estupefato, pela primeira vez, aquilo que eu imaginava estar distante da minha bucólica existência: uma muçulmana, vestindo um chador, acompanhada do esposo e filhinho de traços árabes bem definidos, estes vestidos ao estilo ocidental. Meu modo de observar o mundo é tão assim quanto o próprio horizonte que os olhos humanos podem alcançar, díspar e incomum. Terminada a chama do cigarro, joguei a bituca no pote de barro onde Tia Sônia costuma depositar seus próprios restos, amassei-a, machuquei-a, como, aliás, nós mesmos deveríamos fazer à morte, e voltei ao apartamento. Dobrei o cobertor azul cor da noite e guardei, junto ao travesseiro, no alto do guarda-fatos. Ajeitei a fronha do colchão, também azul. Coloquei o pinguim de pano num canto, presente de um passado que ainda não desejo remoto. Separei as peças de roupa já sujas e as empilhei no chão de tacos. Camisas estampadas, poucas pretas, outras brancas e listradas. Roupas de baixo e meias. O agasalho que só usei em Minas – porque, afinal, eu estava agora no Rio, sob o peso dos quarenta graus -, pendurei num cabide, sobre camisas de botão que não eram minhas. Bermudas e calças suspensas na estoqueira. Óculos escuros, colares, pulseiras, entre outros acessórios, além de livros, revistas, mp3 player, diário e frascos perfumados, todos em seus espaços, cedidos por Clarinha, acomodados e conciliados. Trouxe algumas fotografias e pequenas lembranças de papel em caixas coloridas, sintetizando o ano, como se eu não conseguisse esquecê-lo, tirando o sono das reminiscências. Sapatos e sandálias sob o canapé estofado de couro branco, amarelo, vermelho e azul. Fiquei de pé alguns instantes, olhando o armário de madeira de demolição, que Ana guarda pequenas esculturas de peitoril de janela. Na pequena escrivaninha adesivada, coloquei, silenciosamente, um incensório indígena ao lado do porta-canetas, do castiçal, do frade bebendo vinho, feito de gesso pintado, de um gnomo sentado num trono de madeira, de um alienígena de mármore folheando o livro da vida, um porta-retratos chinês com a imagem do irmão e sobrinho de Rachel, e revistas, marcando as páginas da leitura de mundo que ainda não fiz. Curioso…ao misturar as imagens daqueles objetos com meus próprios vestígios, parecia que eu estava em casa. Pus toda esta imaginação de acordo ao meu pensamento, harmonizei-me com a sensação de pertencimento, acendi um incenso de benjoim, ouvi o silêncio e desci para procurar um vinho. “It’s a black fly in your Chardonnay”, dizia a voz da canção de Alanis. Pus-me num assento de varanda da sanduicheria em frente ao prédio, numa daquelas briseadas ruas de Niterói, cruzei as pernas e fechei os olhos, completamente inebriado. Tudo em volta parecia dádiva de um universo inteirado e nunca antes visto ou sentido por mim. Todo o cosmos, toda terra habitável, todo gênero humano, e mesmo o que excede as forças da natureza, estava ali. Nesta hora quente deste dia dos fins do ano, eu estava ali sim, no Rio. Pois que ri, todo este tempo, dos meus confeitos farmacêuticos, das cartas, da duração das coisas descritas, da finitude delas e até de mim. E lá se foi um ano assim, rindo.


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