Em nome dos direitos humanos é que Estados-nação poderosos justificaram muitas de suas intervenções políticas, com ou sem uso da força militar, em outros países. Entanto, se de um lado a proteção aos direitos humanos justificou alguma declaração de guerra, é certo, também, que o sistema de tratados, convenções e leis internacionais que declararam direitos humanos foram fundamento para movimentos sociais pela democracia, o que contribuiu para a produção de leis nacionais naquele sentido. Fazem parte dessa história o Movimento Antimanicomial, o Movimento Tortura Nunca Mais, o Movimento contra a Homofobia, os movimentos pela igualdade e todos os movimentos sociais que reivindicam um direito sem o qual não há dignidade da pessoa humana. Esses movimentos sociais foram, no século XX, salvo raríssimas exceções, identificados com projetos políticos de esquerda.
No Brasil, a esquerda política foi tendo como melhor expressão partidária o Partido dos Trabalhadores (PT). Não à toa, a população que acompanha a política pode se lembrar que as Comissões de Direitos Humanos sempre foram disputadas pelos deputados e vereadores do PT. A Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal, por exemplo, ainda em 2010, foi presidida pelo paraibano Luiz Alburqueque Couto (PT); ele, que foi Relator da Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI do Extermínio no Nordeste (2003- 2005), tendo, para nossa memória, o então Deputado Guilherme Menezes (PT), prefeito de nossa cidade, como suplente, de modo que ambos acompanharam as investigações de denúncias de extermínio no Município de Santo Antônio de Jesus. Guilherme, mais adiante, em 2008, também escolheu a Comissão de Direitos Humanos e Minorias para integrar como titular, experiência que já havia adotado como Deputado Estadual.
Ainda assim, eu que, durante a militância no movimento estudantil, tive minha experiência (brevíssima, mas elucidativa) na defesa dos direitos humanos, escrevendo e articulando um Manifesto Estudantil com abaixo-assinado contra a violência praticada pelo Governo da Bahia, por meio da Polícia Militar, aos índios que organizaram uma manifestação nos Festejos de Comemoração dos 500 anos do Brasil – à época na condição de Coordenadora Geral do Centro Acadêmico da Faculdade de Direito da UCSAL – não fiquei abismada com a entrega da presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias ao Pastor Marco Feliciano – constatadamente, por suas próprias declarações públicas, homofóbico, machista e higienista. E, ainda menos, ao conhecer sua proposta de aplicação de pena corporal – castração química – aos condenados por estupro. Fiquei, por assim dizer, apenas, impressionada; impressionada com a rapidez da conformação da ordem global nas sociedades e de como a ordem global se expressa no caráter individual.
Eu gostaria de fazer três filas para saber qual ficaria maior: se a fila dos que defendem a castração química para estupradores, se a fila dos que têm dúvida sobre a pena de castração química ou se a fila de quem não admite a reinserção da pena corporal. Quem mata para roubar não deveria ter como pena a perda de uma das mãos? A pena de privação da liberdade tem demonstrado sua falência como símbolo de persuasão para a redução da criminalidade em uma sociedade que só quem tem algum poder econômico se sente livre…
Queria saber, também: quem concorda que o goleiro Bruno e o José Dirceu deveriam ter direito ao silêncio durante o inquérito policial e o processo judicial? Essa garantia constitucional segue no rumo oposto à sociedade da transparência, da informação e do controle…
E quem acha – com todas a sua consciência – que a Justiça precisa expedir mandados de busca e apreensão para que a Polícia adentre a casa de pobres, “quase todos pretos de tão pobres” e quase todos potenciais bandidos? Sabe-se o quanto a Justiça é lenta e que o criminoso anda mais armado que a Polícia…
E, mais que isso, quem não acredita que somente com alguma “porrada” esses “bandidos que não respeitam ninguém” sejam capazes de contribuir, com informações, para o sucesso da atividade policial? Se como resultado houver a descoberta de crimes e de criminosos, uma “torturazinha” torna-se justificável. O cálculo é simples: aplica-se a violência em um para salvar da violência uma centena. Além disso, nossa realidade social não tem permitido que parcela significativa do Orçamento da União e dos Estados seja destinada à Segurança Pública, sobretudo, para investimentos em tecnologias necessárias à formação do que chamam de Polícia de Inteligência…
Enfim, quem realmente nunca pensou, sequer uma única vez, que já é hora de o governo realizar um plebiscito sobre a inclusão da pena de morte?
Não concluo, portanto, que a nomeação do pastor Marco Feliciano (PSC) à Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal deveu-se, somente, a uma necessidade de negociação política (vê-se que o PMDB e o PSDB liberou seus espaços na Comissão ao PSC). A governabilidade é apenas o véu que encobre a ponta de um iceberg.
“Muitos políticos, militantes e acadêmicos invocam atualmente a moralidade e os valores como base da violência legítima, fora da questão da legalidade, ou, antes, como base de uma nova estrutura legal: a violência é legítima quando sua fundamentação é moral e justa, mas ilegítima se sua fundamentação é imoral e injusta. Bin Laden, por exemplo, reivindica legitimação apresentando-se como o herói moral dos pobres e oprimidos do Sul global. De maneira semelhante, o governo dos Estados Unidos pretende a legitimação de sua violência militar com base em seus valores, como a liberdade, a democracia e a prosperidade. De maneira mais geral, numerosos discursos dos direitos humanos sustentam que a violência pode ser legitimada em bases morais (e só assim)”.
E, concluem aquele parágrafo na página 52, com a seguinte afirmação:
“A posição majoritária a respeito dos direitos humanos defende atualmente o emprego da violência a serviço desses direitos, legitimada em sua fundamentação moral e promovida pelos capacetes azuis das forças da ONU”.
Em páginas anteriores, Hardt e Negri destacam o papel da tortura na manutenção da ordem mundial atual:
“A tortura torna-se hoje em dia uma técnica de controle cada vez mais generalizada, ao mesmo tempo em que se banaliza sempre mais. (…) Na realidade, é cada vez maior o número de casos em que pouco efeito têm as convenções internacionais contra a tortura e as leis nacionais contra punições cruéis e inusitadas. Tanto as ditaduras como as democracias liberais utilizam a tortura, aquelas por vocação, estas por suposta necessidade.“
Assim, escrevo apenas para dizer que tem “gente grande” falando que estamos na Era do Império, na qual não é mais a lei que legitima o uso excepcional da violência. Que tem “gente grande”, como os Estados-Unidos – aqueles que são baluarte da defesa dos direitos humanos -, defendendo o emprego da violência com base em valores e questões morais, e não na lei. Ou seja, que a violência não é legítima porque uma lei, anteriormente editada, diz que ela é permitida naquele caso. A violência é legítima se, após seu uso, há o consenso de que contribuiu para a manutenção da Ordem desejada.
Isso é o mesmo que dizer em âmbito local: se, por meio de alguma tortura, alcança-se um recorrente molestador de crianças em uma comunidade, e, com isso, retoma-se a paz social, aquela violência (a tortura) passa a ser legítima. Mas se a tortura praticada gera caos social e aumenta a onda de violência na comunidade, sua prática torna-se ilegítima. Com isso, no primeiro caso, alcança-se a defesa dos direitos humanos; no segundo caso, não.
Só posso concluir que, muito além da governabilidade, a presença do Pastor Marco Feliciano na Comissão de Direitos Humanos e Minorias é, essencialmente, a demonstração de que religião e política estão cada vez mais se reaproximando na pós-modernidade, justamente porque a moral e os valores têm alcançado papel legitimador de ações (sobretudo ações violentas) superior à legitimidade promovida pela Lei, no Estado de Direito./Blogdofabiosena.com.br
A Lei do Talião é o réquiem da pós-modernidade… E paro por aqui, pois dá muita filosofia esse assunto.
4 Respostas para “Marco Feliciano: um pouco de tortura vale a pena”
Nelson Brito
Quero parabenizar à Dra. Nadjara por sua coragem em discutir um assunto de tal importancia na atualidade, onde impera o falso moralismo. Fico pensando sobre essas pessoas que se dizem defensoras dos direito humanos e que na verdade só defendem bandidos e jamais ví qualquer um deles falarem ou fazerem algo por pessoas de bem que são roubadas, vilipendiadas, assaltadas, espancadas, estupradas ou assassinadas. Digo sempre: Sou a favor dos direitos humanos, más para HUMANOS e não para bichos travestidos de humanos.
José Paulo
Eu só consigo pensar em quando a lei fracassar.Direitos humanos para onde mesmo?
toda esta falacia apenas porque os ativistas gays discordam do nome em questão.
Um codigo penal caduco e frágil,um povo mal instruído e amoral,um estado corrupto e omisso.O que eu devo cativar de uma nação que é subdividida pelo preconceito social?
O meu povo não está preparado para esta inquisição de valores.Portanto falar em direitos é bom que todos estejam incluídos,pois as minorias discriminadas são aquelas que nem a voz sabem usar num País dividido por sotaques!!!
Rafaela
Acredito que o deputado Feliciano à frente da Comissão de Direitos e Minorias é um ato abominável, no entanto, o fato dele ser pastor de uma igreja não é o elemento que justifica as suas atitudes antidemocráticas, por isso, a expressão Pastor, estigmatizada nas colocações sobre o assunto, deveria ser suprimida com a finalidade de não manchar toda uma categoria de pastores que não advogam a mesma ideia do parlamentar.
Além disso, é uma tremenda ingenuidade pensar que a religião e a política estão se reaproximando na pós-modernidade, vez que, na verdade, nunca se distanciaram.
Em alguns momentos da história mundial, a religião pode ter sido mascarada, “posta em escanteio”, mas nunca esquecida pela política, afinal a religião é um importante instrumento de manipulação de massas. A moral e os valores sempre legitimaram ações político-sociais.
Outrossim, vale lembrar que, atualmente, “evoluímos” de Estado de Direito para Estado Democrático de Direito, e alguns autores já utilizam a expressão Estado social-democrático, cujos itens centrais de legitimação desse Estado são, exatamente, a dignidade humana e a própria democracia.
Por isso mesmo é que o goleiro Bruno e José Dirceu podem ficar calados, estamos em um Estado de ponderação de princípios constitucionais, em que um princípio não é superior a outro, mas se adequa melhor ao caso concreto do que outro e, indubitavelmente, o direito de exercer ampla defesa e contraditório é um pilar da dignidade humana e democracia.
EDSON
Tudo que foi dito, inclusive os comentários, fazem parte da necessidade humana, antes os homens, na sua totalidade reverenciavam a natureza para justificar sua existencia, pela necessidade criou se Deus, pois houve um avanço na compreensão da natureza, dessa justificativa de um ser superior que tudo criou, duas vertentes, mulçumana e hebraica, e, mais a frente, outro dimensão, Jesus. Nesse meio termos outros formas para também justificar a existencia, budismo, confucionismo, etc. Tudo isso, com uma carga de valores sem precedentes, para justificar também tudo. Só que hoje, essa confusão toda, o medelo de economia, disvirtuou o que então era moral?! No sítio pode se tudo, na rede pode se tudo, e, em todos os sentidos estamos perdendo o rumo, em quase todos os cantos da terra. Os EUA cometem genocídios, invasões, e todos os tipos de arbitrariedades que fica por isso mesmo, principalmente na condição de mentor e continuador desse modelo economico que banalisou a condição do Ser enquanto Ser. Precisamos cultivar a sabedoria sem confundir com conhecimento, a sabedoria sobrepondo a inteligência, daí podermos fazer julgamentos.