Domingo, dia de campanha em Piragiba, zona rural de Muquém de São Francisco, cidadezinha de pouco mais de 10 mil habitantes encravada nas planícies empoeiradas do Oeste baiano. É fim de manhã quando chega um ônibus escolar financiado pelo governo federal unicamente para transporte de alunos da rede pública. Mas, longe dos olhos da lei, Muquém vive um faroeste das urnas, em que vale tudo para comandar a prefeitura pelos próximos quatro anos. Mesmo que seja usar em eventos eleitorais veículos exclusivos para estudantes.
O episódio, registrado em 3 de março por um cinegrafista amador na caminhada do candidato Evandro dos Santos Guimarães, o Vandim da Farmácia (PT), compõe o balaio de ilegalidades que caracterizam o processo eleitoral de Muquém. No município onde a riqueza dos barões do agronegócio contrasta com a dureza da vida de pequenos agricultores em seca, o CORREIO viu, ouviu e flagrou cenas e depoimentos que revelam compra de votos, abuso de poder econômico e uso da máquina pública para favorecer um grupo político.
Para entender a escalada que transformou a cidade em terra de ninguém, é preciso voltar ao fim de 2012, quando a Justiça cancelou as eleições para prefeito. Como em quase todos os pequenos municípios do Brasil, o bolo do poder em Muquém é dividido em duas fatias. De um lado, estava Marcio Mariano (PP), apoiado pelo então prefeito Zé Nicolau, reeleito pelo PMDB em 2008. Do outro, Vandim, que também disputou as eleições naquele ano pelo PV. Mas, por falta de uma certidão judicial, Mariano teve a candidatura indeferida pela Justiça Eleitoral.
Por efeito em cadeia, foram considerados nulos os votos dados a candidato do PP – 3.601, apenas 233 a mais que o rival do PT. Contudo, o percentual invalidado pela Justiça superou 50% da votação total. Índice que, pela lei, exige a realização de eleições suplementares, marcadas para 7 de abril, junto com 16 outras cidades brasileiras.
É nesse ponto que começa a montagem de um esquema de utilização da máquina pública com finalidade de vencer o duelo travado entre o 11 e o 13, como se denominam os grupos envolvidos na disputa, em referência ao número dos partidos nas urnas.
Penúltimo no ranking dos nove vereadores eleitos em outubro passado, com 295 votos, Osmar Gaspar (PT), aliado de Vandim, conseguiu apoio para se tornar presidente da Câmara Municipal. Com a cidade sem prefeito, Gaspar herdou o cargo por 90 dias, período necessário para finalizar a eleição suplementar, na qual os mesmos candidatos de de 2012 se lançaram às urnas, em um tipo de segundo tempo. Só que, dessa vez, é o time do 13 que manda no campo do jogo, com regras feitas ao arrepio da lei.
Imagens
É o que revela o vídeo gravado em 3 de março, em que um ônibus escolar com a logomarca do governo federal chega ao distrito de Piragi, no mesmo dia e lugar de um evento de campanha de Vandim. Obtido através do programa Caminho da Escola, o veículo é um dos três que foram financiados pelo município com recursos do Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação (FNDE), exclusivamente para atender alunos da rede básica de ensino.
Menos em Muquém. Dele, desembarcam atletas para um torneio organizado pela prefeitura interina de Osmar Gaspar, eleitores e militantes de campanha, transportados para acompanhar a caminhada de Vandim. Ilegalidade não só restrita aos ônibus do Caminho da Escola.
Dia 9 de março, o CORREIO esteve em Javi, o maior dos distritos de Muquém, mais populoso e desenvolvido que a própria sede do município. Situado às margens da BR-242, que corta a vastidão do Oeste rumo a Brasília, Javi guarda uma peculiaridade comum aos lugares que sobrevivem em meio ao fluxo de caminhões e carretas, onde a desconfiança faz parte do modo de vida.
Lá, câmeras e perguntas demais nunca são bem-vindas. Ainda mais naquele sábado com os termômetros beirando os 35 graus, em que o povoado assistia com atenção ao movimento em torno da inauguração do comitê de Vandim.
Minutos antes, na sede de Muquém, a cerca de 30 quilômetros de Javi, o CORREIO registrou o momento do embarque de militantes fardados e com bandeiras do PT, em um ônibus escolar que presta serviço à prefeitura. Ao notarem a câmera, os passageiros gesticulam, gritam: “Filma, pode filmar”. Um homem, apelidado na cidade de “Gil Rei do Gado”, fala em tom intimidatório: “Tá fotografando o que aí? O que é que cê quer?”. A tensão permanece, enquanto o ônibus parte.
Trios
De volta a Javi, um dos dois trios elétricos contratados para a abertura do comitê cruza a BR, com os jingles de campanha nas alturas e miltantes acenando para a população. De acordo com consultas a especialistas e ao Tribunal Regional Eleitoral da Bahia (TRE), a Lei das Eleições (9.504, 97), veda expressamente o uso de trios como veículo de propaganda em eleições. Em seguidas interpretações da Justiça, eles só podem ser usados como palco fixo, nunca em movimento.
Ao longo da rodovia, dez ônibus escolares que servem à prefeitura continuavam enfileirados à espera do fim do evento, para transportar eleitores de volta aos locais de origem. Todos com cartazes de Vandim e adesivos do PT colados aos para-brisas ou em latarias.
Já passava das 15h quando chegam ao comício dois figurões do PT – o presidente estadual do partido, Jonas Paulo, e o ex-prefeito de Camaçari, Luiz Caetano, um dos quatro pré-candidatos petistas ao governo do estado em 2014. É noite e ninguém parecia preocupado com o rosário de ilegalidades à vista de todos. Sem contar com as que ocorrem sob o silêncio das planícies de um cenário de faroeste eleitoral.
Intimidação em entrevista com prefeito interino
O CORREIO procurou o prefeito interino Osmar Gaspar para ouvi-lo a respeito das imagens e relatos sobre crimes eleitorais e uso da máquina pública a favor da candidatura petista.
O contato feito na inauguração de uma creche no Javi foi interrompido por tentativas de intimidação por parte da equipe do prefeito e pelo presidente da Câmara de Vereadores de Muquém, Mylton Pereira (PPS). Ao saber do teor das imagens que provam o uso de ônibus escolares para transporte de campanha, Gaspar disse que os veículos “são particulares e fazem o que quiser” e negou que eles prestassem serviço à prefeitura.
Foi corrigido pelo seu chefe de Gabinete, Josevando Abreu, que afirmou que eles eram locados pela administração, “mas só de segunda a sexta”. Em pouco mais de três minutos de entrevista, os aliados do prefeito se dirigiram com palavras grosseiras e ações intimidatória à reportagem e ao cinegrafista amador que acompanhava a entrevista a pedido do CORREIO, o que causou o fim da entrevista.