Pílula dos castelos de Areia – Número 60

Marco Antonio Jardim

Esse mundo não é meu, nem seu, mas um dia hei de construir castelos nele. Marcus ligou, tirando-me dos devaneios do meio-dia em que, sentado no sofá da ante-sala, sob a luz morta que vinha da janela do meu quarto e refletia na mesinha empoeirada, eu lia sobre a Holanda. Marcus pediu urgência no envio do modem. Ele viajaria às 21h30 para Salvador e, de lá, para Nova York. Acreditei que ele não esqueceria de repetir o pedido, mas partiu sem levar a peça. Deixou-a guardada numa gaveta, sob papéis. Liguei e os telefones, inexplicavelmente, deixaram de funcionar. Consegui um número de uma vizinha, duas casas abaixo da minha, e passei a mensagem. Notei que minha rua estava silenciosa nesse dia de frio cortante. Até aguardei na porta, fumando um cigarro, já que era sábado. Marcus não veio. A porta, então, bateu. Minhas chaves ficaram dentro.

Os telefones continuavam sem funcionar. Fui atrás de chaveiros ali pela Gerson Sales. Encontrei um que precisaria de transporte. Ele demorou a descer as escadas do apartamento mal projetado. O tempo passava, mas eu estava estranhamente calmo. Alheio, talvez. Conheço bem esta sensação de defesa. Algo estava pra acontecer. Segui numa outra direção, num cruzamento entre uma feira livre e pontos comerciais. Num átimo de segundo, um motociclista em alta velocidade se chocou com o carro. “O homem é o homem e a sua circunstância”, me veio à mente em flash. Pensei em Deus. Deus? Meus olhos fecharam. Não sei de onde surgiram tantas pessoas. Aquela rua parecia escura e abandonada, minutos antes. Os burburinhos todos estavam me incomodando. As luzes também. Eu só conseguia olhar o todo, a dinâmica da vida e sua concepção. E meu corpo só sentia os permanentes processos de mudança. Um por um. Mesmo no termo da existência, sou um poeta à moda antiga. Com amor à vida, ainda por cima.”O amor que está vivo nunca está pronto. O amor que está vivo está sempre em movimento”. Onde mesmo li este trecho? Eu forçava algum gesto, como se algo me impelisse para o que me afigura belo e grandioso. Entrecortadas, pessoas e cenas iam e vinham, feito sombras. A noite de aniversário de Diego. Sim, sons de uma garrafa de vinho à deriva no bagageiro. Marcelo interpelando transeuntes numa rodoviária em madrugada plena. Um bilhetinho dirigido a Leo, o companheiro de Cecye. Sua expressão, sua silhueta inteira à meia-luz. As incitantes conversas com Yves e Manú. As vitórias de minha mãe. O intimismo da casa de Rachel. Ah, como aqueles cômodos me fazem recordar Jhonathan. Lucas chorando. Di chorando. Trechos de voz de Janelle. Palavras esparsas, como sienista. Uma vontade inexplicável de estar numa piscina, mergulhado por inteiro, batendo cinquenta metros na água azul. De novo, a voz de Jhon ao telefone dizendo “Ei, rapaz!”. Uma inscrição de camiseta: “às vezes eu tento ser normal”. O gato mesclado que deitou ao meu lado e o meu filhote J., mordiscando meu queixo, pedindo carinho. E Lana, numa esquina. Nós nos parecemos. Sempre estamos com um livro embaixo do braço. Por hora, Ernest Hemingway comigo e alguma coisa de Pessoa com Lana. Lembro de termos ido ao Boliviano. Tomamos capuccino no balcão. Adoro balcões de bares e cafés. Por vezes, no entanto, sentamos em mesinhas redondas e passamos o tempo a rir de nós mesmos. Por três vezes nos encontramos lá num mesmo dia. Ela não parece se importar quando chegam amigos ou conhecidos e roubam minha atenção. Às vezes vou sentar-me num banco acolchoado, ao fundo do salão de piso em mosaico antigo, e fico a trocar ideias e tempo com a enteada do meu irmão e sua animada filha, Renata. Ou passeio pelas gôndolas de doces com Gau e Cleiton, que sempre me observam com olhares inquiridores. Outra vezes, vou para um canto mais discreto, à meia-luz, com minha irmã, seu belo companheiro barbado, e outros amigos. Sempre bebemos Bourbon com papaya, preparando-nos para alguma festa. E lá está Lana, no balcão do Boliviano, com seu livro aberto. Engraçado que, em alguns momentos, eu via, ao seu lado, um menino. Parecia um pequeno jornaleiro, vestido com boina xadrez, suspensórios, camisa muito polida, posta por dentro da bermuda curta, e sapatinhos lustrados da mesma cor das meias. Sempre que eu aparentava cansaço ou tristeza, lá vinha o menino, afastando-se de Lana, a me cumprimentar. Eu o vi me observando ali, no cruzamento. Era um menino de rosto magro, mas afilado, impossível de esquecer. Eu o vi também passando por uma borboleta de ônibus e um velho o examinava. Vi meu passado completo e os reflexos de um futuro impreciso. Vi Caio falando sem parar. Suas frases volvendo repetidas. “Sim, eu acredito. Sim, eu acredito. Sim, eu acredito”. Havia gosto de sangue em minha boca. E de Cosmopolitan. Alguém, que não lembro, gritava censuras injuriosas ao motociclista. Era um conhecido. Não recordo mesmo quem foi, mas sussurrou: “Você é a única companhia agradável para esta noite. Por favor, fique!”. Senti minhas costas marcadas, doídas. Meu irmão veio ao meu encontro. Eu estava no intermédio entre o céu e o inferno. Eu e minhas loucuras sãs, no limbo, decidindo meu destino. Com os olhos ainda fechados, nestes segundos intermináveis, vi uma placa de mármore numa porta descascada. “Docere, delectare, movere”, estava escrito em letra cursiva. Na iminência do tempo que se encerrava, respirei. Eu havia escutado a batida. Olhei para o lado inverso e vi o corpo imóvel do motociclista no chão. Saí do carro e corri em sua direção. Peguei em seu ombro e perguntei se estava bem. O mesmo conhecido o chamava de louco. “A culpa é minha”, respondeu o homem. Suspirei, serenado. “Aqui está minha vida – esta areia – tão clara, com desenhos de mudar dedicados ao vento”. O chaveiro, enfim, abriu a porta. Um dia ainda hei de fazer castelos.


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