Jorge Maia
Foi no tec, tec, tec da minha Olivetti que nas madrugadas frias e longas do ano de 1977 que eu iniciei a datilografar os meus primeiros arrazoados jurídicos. Eram peças simples, na maioria voltada para o serviço de assistência judiciária gratuita, defendendo gente simples do povo. O silencio das madrugadas era quebrado pelo tec, tec, tec, tec da minha Olivetti Studio 45. Não havia sonoridade que pudéssemos chamar de ritmo. Era um som sem aquela musicalidade imperativa dos bons datilógrafos. Não cursei a escola de datilografia de Dona Dora, famosa professora de datilografia, cuja sede era na Rua Monsenhor Olímpio e a diplomação era realizada solenemente na sede da Maçonaria na Av. Lauro de Freitas. Era uma formatura!
Todas as manhãs eu levava a tiracolo a minha Olivetti e com ela retornava para casa ao fim do dia, para que em casa datilografasse as minhas peças. Era um desastre. Não sabia datilografar e me custava muito caro cada erro, tão facilmente corrigidos hoje no Windows. Errar uma simples letra causava um transtorno, enfeando o trabalho. Ademais, uma boa datilografa custava uma fortuna mensal. Tinha que refazer o trabalho, ou, vez por outra, chamar a atenção: onde se lê X, leia-se Y, ou ainda: vale a rasura, ou, em tempo. Enfim. eram os remendos que podíamos fazer sem causar dano ao trabalho.
Depois a Olivetti lançou a máquina eletrônica. Uma fortuna, mas que logo adquiri, era um milagre à disposição dos maus datilógrafos, em especial para aqueles que “catavam milho” como era o meu caso.
Por fim, a mágica dos computares. Quase enlouqueci para, simplesmente, aprender: ligar, desligar, fazer a margem, gravar e imprimir. Um péssimo datilógrafo não poderia ser um bom digitador.
Agora o processo judicial é eletrônico. Não há mais o uso do papel. Não basta digitar, tem que usar a internet. A cada modernização dos equipamentos da escrita, vários profissionais vão saindo do mercado de trabalho por falta de condições de compreender os novos meios e equipamentos, os quais mudam com tanta velocidade que torna inútil amanhã o que hoje é moderno.
Confesso que tanta modernidade tornou-me analfabaitico, mas não desisto. Sigo em frente tentando adaptar-me aos novos tempos. Sou como os cowboys do velho oeste que morriam atirando.
No ano passado retirei a minha Olivetti do seu descanso e a enviei para algum trato: limpeza, lubrificação, essas coisas que devemos fazer com os equipamentos para conservá-los. De volta da oficina, o técnico que veio devolvê-la perguntou se eu não queria vendê-la, pois eu não mais a usava. Faltou-me a voz. Por um instante pensei em revidar tamanha ofensa. Mas pensei na ingenuidade daquele homem, o qual apenas via ali um interesse econômico, não sabia ele das madrugadas frias do nosso inverno em que a minha Olivetti me fez companhia, ficava ali quietinha, fazia apenas tec, tec.tec quando eu permitia. Uma companheira fiel que sabia tudo que eu escrevia, de bom ou de ruim e guardava para si.
Eu não queria magoar aquele homem que me prestara um serviço tão bom. Talvez a última ida da minha Olivetti para manutenção e decidi responder, temeroso que a oferta fosse aceita, que eu venderia a máquina por um milhão de Reais. Ele sorriu compreensivo, entendendo que eu não venderia a Olivetti. Talvez ele tenha compreendido que não se vende as coisas, os valores, os sentimentos e as lembranças incorporadas a nossa alma.
Jorge Maia, maio de 2013.
10 Respostas para “Minha Olivetti Verdinha”
Carlos Costa
Parabenizo o meu amigo e nobre advogado Dr. Jorge Maia pelo belíssimo artigo que muito me comoveu. Também sou dono de uma máquina de datilografia Olivette Studio 45 que teimo em conservá-la como uma filha minha. Nela eu aprendi a datilografar com esmero e dedicação. Lembro-me que encobri as teclas com uma tinta vermelha e a minha sintonia com a máquina era tamanha que eu conseguia datilografar de olhos fechados. Minha Olivetti tem me acompanhado há mais de 35 anos. Comprei-a no antigo Magazine Aracy e também foi minha companheira nas noites frias de inverno em Campo Mourão, no estado do Paraná e em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. Como o meu amigo, também comprei uma máquina de escrever eletrônica, uma Casio, mas não desfiz da minha companheira verdinha.
Para mim, o rito de trocar a fita era como se eu estivesse alimentando a minha companheira, e esse ritual sempre realizava ao menos uma vez por mês. E aqui estou digitalizando esses comentários mas se esquecer o “tic-tac” enebriante que tão bem fazia aos meus ouvidos.
Apesar de minha mulher querer sempre jogar fora a minha amiga máquina de escrever, eu a tenho como um bem de valor inestimável e teimo em guardá-la (ao lado da minha eletrônica Casio, que está quebrada e jamais será consertada) como recordação dos tempos bons que não voltam mais e que jamais apagarei da minha memória.
Edson Augusto
Olá Prof. jorge Maia , todos esses de trabalho com sua Olivetti também presenciei meu pai Edmundo França com suas escritas e confecções de provas que duraram anos e anos , essa lembraça é presente hoje em ver como o Sr. E meu meu se transformaram em homens decentes , corretos e honestos nos dias de hoje .
Um forte abraço do amigo Edinho
Miguel Felicio
É sempre muito interessante apreciar os feitos do nosso admirável Professor Jorge Maia. Que boa recordação, o grande Jorge nos faz lembrar de forma bem humorada, que sempre é a sua marca, mas também dando um conteúdo de valores e sentimentos tão genial.
Obrigado pelo brinde, grande amigo e eterno professor Jorge Maia.
França
Verdinha. Sei.
Tiago MArtiniano
Muito bom Colega e professor. Fui e sou seu aluno da UESB, hoje colega, e admiro muito a simplicidade e inteligência sua Dr Jorge! Os primeiros arrazoados jurídicos que alicerçaram a cultura jurídica de nosso Município e Região, Vitória da Conquista por se orgulhar de ter uma cultura jurídica imanente em seus profissionais que reluz pelo BRasil. Enorme Abraço!
Hellen Lins
Professor, lembro-me de minha infância vendo meu pai datilografando no escritório, ele é perfeccionista, cada errinho começava de novo, tinha uns lápis borracha que ele nem sempre admitia usar, era um transtorno, folhas gastas tempo perdido ,mas me ficou a lição pelo o esmero na labuta da advocacia, coisa que parece ser quase que um privilégio exclusivo da geração de vocês. Seu texto muito me comoveu e vocês vcs cowboys ainda têm muita bala a disparar e nos ensinar a mirar melhor… Grande abraço da sua sempre aluna Hellen Lins Mello
Jorge Maia
Obrigado, gente. Todos muito gentis.
WEBER
É muito bom poder ler um texto do Prof. Jorge Maia. Fui seu aluno nas disciplinas Legislação Rural e Legislação e Ética Profissional, no Curso de Agronomia da UESB, que apesar de serem ministradas em um final de tarde de uma 6ª feira, pois alunos oriundos de outras cidades e que ficavam ávidos pra passar o final de semana em casa, se tornava imperdível poder desfrutar da sabedoria do nobre professor. Na minha vida discente tive que “sofrer” com uma Oliveti e mesmo depois de formado em 1997 tive que elaborar alguns projetos fazendo uso dessa ferramenta e não raro perdi alguns trabalhos até que fosse possível trabalhar com os computadores.
Élcio Rizério Carmo
Dr Jorge Maia revela o carinho a sua máquina de escrever com um certo saudosismo, apesar das dificuldades reveladas por ele. Com o mesmo sentido e sentimento alguém poderia escrever sobre um fusquinha, um radinho de pilha, uma máquina fotográfica (analógica, é claro !), enfim outas máquinas que também trazem boas lembranças e recordações. Não sei se no futuro alguém terá saudades do seu computador, do seu celular ou do seu tablet… Parece que o consumismo não só descarta apenas as máquinas, mas também os nossos bons sentimentos, como esses revelados por Dr. Jorge.
Noeme
Professor, adorei o seu artigo pois me fez lembrar meus amigos e familiares datilografando. Eu achava tão interessante que dizia com 8 anos de idade que meu sonho era ser secretária, só para usar uma máquina daquela.kkk.saudades professor.