Raul Seixas está vivo e mora em Vitória da Conquista-BA

Charge: Gil Brito

Encontrei o Maluco Beleza na feira livre do bairro Brasil e almoçamos juntos no mercadão

Gil Brito

Enquanto percorria a feira livre do bairro Brasil pelo estreito corredor, formado pelo espaço que restava por entre as barracas, decidi parar numa delas para comprar beijus. A barraca ao lado, que vendia CD’s e DVD’s não necessariamente saídos da fábrica, tocava, num já arcaico aparelhomicrosystem, uma coletânea da cantora Diana. O camelô testava as faixas gravadas no disco, uma por uma, mas limitava-se à introdução das canções. Quando começou a tocar “Ainda queima a esperança”, um senhor de óculos escuros, que passava por ali, parou subitamente e pediu a ele que deixasse a música avançar um pouco mais. Percebi isso, enquanto entregava uma nota de cinco reais ao vendedor e, simultaneamente, recebia o pacote de beijus.

A música chegou ao fim. Era a última do CD. O mesmo senhor perguntou ao dono da barraca de CD’s se não havia ali uma coletânea de Jerry Adriani. O rapaz assentiu com a cabeça. “É mole pra nós”, disse. Em seguida, apertou um dos botões do aparelho de som, fazendo abrir a tampa e substituindo a coletânea de Diana por outra de Jerry Adriani.

– Pule logo pra música “Doce doce amor”, meu nego. E deixe tocar até pelo menos a metade – pediu educadamente o senhor de óculos escuros.

O camelô foi apertando o botãozinho seguidas vezes, pulando cada uma das canções, até que chegou à faixa solicitada pelo cliente. Quando soaram os sons iniciais do órgão em “Doce doce amor”, o cliente baixou a cabeça e passou a impressão de querer ouvir atentamente cada verso da canção. Não fui o único a me dar conta de que ele queria privacidade. O camelô e os demais passantes também se aperceberam, de modo que um silêncio repentino se impôs no ambiente – apesar de estarmos todos numa feira livre. A postura daquele senhor se impôs de tal forma que o camelô deixou que a música seguisse até o final.

Após o fim da canção, o senhor de óculos escuros levantou novamente a cabeça. De repente, virou-se para mim. Tive certeza de que ele me olhava nos olhos, embora estivesse de óculos escuros. E não pude deixar de perceber que havia nele algo de familiar. Sempre tive certa dificuldade para memorizar nomes, mas, guardar rostos, é comigo mesmo. No entanto, pensei, comigo, que a situação seria absurda demais. Não me levei em consideração.

– Gostou das músicas, bicho? Fui eu que fiz – disse a mim, enquanto retirava de um dos bolsos da jaqueta um isqueiro e uma carteira de Hollywood. Enquanto falava, mascava um chiclete.

– C-c-como? O senhor está falando comigo? – balbuciei.

– Sim. Ou tem mais alguém aqui que gostou dessas músicas tanto quanto eu? Vi nos seus olhos – perguntou novamente, deixando-me sem argumentos. Levando as duas mãos à frente do rosto, acendeu o cigarro calmamente e deu uma tragada forte. Em seguida, olhou para o alto e soltou a fumaça pelas narinas. Após ter falado comigo, virou-se novamente para o dono da barraca.

– Vem cá, meu nego: você não tem aí nada de Luís Gonzaga? Um baião dos bons?

– Tem sim, meu patrão! – respondeu o camelô, repetindo o que diz a todos os que lhe procuram. Vasculhou pelas centenas de CD’s até encontrar uma coletânea do rei do baião: “The Best of Gonzagão”.

– Vou levar esse. E me dê também aquele ali, do rei.

– Do Roberto Carlos? – perguntou o camelô.

– Não, de Elvis Presley, o rei do rock – respondeu prontamente o senhor de óculos escuros , retirando do bolso e entregando ao comerciante uma nota de cinco reais, completamente amassada. Após receber o troco, ele voltou a olhar em minha direção. A essa altura, eu ainda continuava a não crer em minhas próprias intuições.

– Luís Gonzaga é o fino, não acha não, nego? – perguntou-me. Fiz que sim a cabeça, e com intensa convicção, pois também aprecio a obra do rei do baião. Em dado momento, cheguei a me questionar, achando que estava maluco. Maluco beleza. Mas estávamos no início do dia. Não havia – ainda – espaço para tal possibilidade.

Dei-me conta de que teria de criar coragem. Já não me satisfazia com a razão, crendo mesmo que havia por ali, naquela feira, mais mistérios do que propunha minha vã filosofia. Decidi que me lançaria à exclusão da dúvida, custasse o que custasse. Lancei-me.

– Vem cá: o senhor não é Raul Seixas? – perguntei.

– Sou, por quê? – respondeu simplesmente, deixando-me tonto.

Tremi. Deixei cair no chão o pacote de beijus. Não imaginaria estar um dia ali, falando com ele – e, ainda mais, chamando-o de “senhor”.

– Mas, mas… – Tentei, e não consegui, perguntar o óbvio: e a morte tão noticiada pela mídia em agosto de 1989?

– Olha, bicho, eu sei o que você quer perguntar. Mas, negócio seguinte: a morte surda caminha ao meu lado. E eu não sei em que esquina ela vai me beijar.

– Ei! Isso é um trecho da música “Canto para minha morte”, que você gravou em…

– Sim, sim, bicho. Agora, vamos ali até aquele mercadão. Tô morto de fome.

O almoço no mercadão

Esqueci-me da lógica e da razão, que me são tão caras, e mergulhei no que meus olhos viam. Deixei de elucidar dúvidas sobre o que a razão me ditava. Raul Seixas estava ali, 48 quilos de baião na minha frente, e me convidara a almoçar no mercadão. Baixou-me, então, a dúvida: ele parecia conhecer melhor do que eu a geografia – ao menos gastronômica – da feira que frequento há tantos anos. Enquanto nos dirigíamos ao mercadão, procurei não incomodá-lo com perguntas. Mantive-me numa espécie de êxtase passivo. Assim que chegamos, sentamo-nos a uma mesa e sugeri que pedíssemos uma cerveja e dois pratos de feijoada. Raul preferiu um uísque, o que me fez abrir mão da cerveja e acompanhá-lo no mesmo pedido. Brindamos à vida, e foi nesse momento que reuni minhas forças e lhe perguntei por que estava na cidade.

– Fiz um show aqui em 1977. Foi o velho Codó quem me contratou. Gente boa, o Codó. Se não me engano, foi naquele estádio…

– O Lomanto Júnior?! – interrompi, impaciente.

– É, acho que foi esse mesmo. Foi um show lá, no gramado. O estádio lotou, foi um sucesso. Acabei gostando da cidade. Moro neste bairro mesmo, bicho.

– Fiquei sabendo. Até fiz um trabalho acadêmico sobre isso, na época da Universidade… E depois, reaproveitei o assunto numa matéria jornalística.

Nesse momento, um bêbado passou por nós e deu uma singela cuspida no chão, precedida de um intenso ruído de pigarro. Automaticamente, incomodei-me com o gesto do sujeito. Raul, enquanto jogava fora o cigarro já consumido, disse calmamente:

– No bar não se cospe no chão, nego.

– Ei, Raul, esse trecho é de “Quando você crescer”, que foi lançada no álbum…

– Ô, meu nego, vamo almoçar logo. Essa feijoada tá com um cheiro bom demais – disse, abreviando meu comentário e atirando longe a ponta do cigarro, já no filtro.

Obedeci. Almoçamos, conversando sobre amenidades. Raul comentou que, em Vitória da Conquista, já não faz o mesmo frio que ele conheceu há 35 anos, na época do show no Lomantão. Terminamos o almoço e pedimos mais dois uísques. Após sorver o primeiro gole, ele acendeu outro Hollywood. Alongamos o papo, passando a falar sobre o atual cenário musical brasileiro.

– Um tédio. Até a Serra Pelada, quando estive lá, era mais animada – sintetizou o autor de “Ouro de tolo”.

– E Paulo Coelho, Raul? Você tem tido contato com ele? – arrisquei-me a perguntar.

– Continuamos inimigos íntimos – disse o artista, repetindo o que dissera em entrevistas publicadas nos anos 80.

Quando eu me preparava para perguntar sobre o que ele pensava a respeito dos protestos que acontecem em várias cidades do país, Raul pediu licença e se levantou da mesa. Notei que mantinha a gola da camisa levantada, como fazia nos anos 50, e já mascava outro chiclete – levara-o à boca após terminar o prato de feijoada. Disse que precisava cuidar de alguns assuntos. Antes de despedir-se de mim, secara o que restava no copo de uísque e cuspira o chiclete diretamente num pequeno balde, já atulhado de lixo. Depois, ajeitara novamente a gola da camisa.

– Não tenho nada pra dizer. Só vim cantar meu roquezinho antigo, que não tem perigo de assustar ninguém…

Tive novamente o impulso de dizer que ele mencionara um trecho de “Let me sing”, mas me contive. Antes de partir, guardou cuidadosamente na bolsa os CD’s, recém-comprados, de seus mestres Luís Gonzaga e Elis Presley. Durante o breve instante em que se despedira e afastara do rosto os óculos escuros, pude ver que uma lágrima caíra de seus olhos, por sob as lentes.

Agarrei minha sacola de beijus. E não pude impedir que outra lágrima também caísse de meus olhos.


5 Respostas para “Raul Seixas está vivo e mora em Vitória da Conquista-BA”

  1. Beto Veroneze

    Gil Brito: belíssima crônica….

  2. andre

    amigao vc ja tinha tomado quantas cervejas neste dia ate a hora de vc encontrar ( RAUL ). procura um tratamento vai le fazer bem.kkkkk

  3. Rebeca Leite

    Que felicidade em ler tão perfeita homenagem, á esse meu/nosso ídolo, pois vivemos um atual contexto musical deplorável, onde cantores e letras são descartáveis e deploráveis!!!
    Amei, amo e continuarei amando o “Meu” Eterno Maluco Beleza!!!

  4. EDIVALDO FERREIRA

    EU FUI TESTEMUNHA DO AMOR DE RAPUNZEL E DO PAPO DO GIL COM O RAUL.

  5. Cassia Rocha

    Parabéns colega, seu texto é divino!! Adorei…

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