Saudades

Valdir BarbosaValdir Barbosa

Isac Nunes, Isaquinho, não nos brindará mais com poemas de cordel, da sua lavra, ou escritos por tantos patativas, destes nossos assarés brasileiros, ao declamá-los energizando fins de tarde, no posto da Vitor Brito, de tantas memórias nossas, dessa velha e saborosa Conquista. Sobretudo, ao lado dos irmãos Gonçalves, Sergio, que se foi anos antes e Paulinho que ainda nos ladeia – lembrei de Mário, o velho Ladeia, também partido.

Isaquinho não desfilará mais sua cabeleira negra lisa, sua coragem quase kemicaz, seus valores um tanto radicais baralhados numa fragrância que fazia emergir de seu âmago, um misto de rudeza do sertanejo e doçura de um menino a ser acalentado. Nos prados, nas cidades, nos mares e nas pistas de vaquejada que conheceram sua tempera, enfim nos quatro cantos desta terra que tanto amou.

Dema, da Farmacia Lia, não descerá mais a Barão do Rio Branco, com seu ar bonachão distribuindo a mancheia uma simpatia própria dos altivos. O sorriso embutido no rosto largo era mais sentido do que mesmo visto. Seres como ele, soberanos natos são capazes de dizer sem falar palavra.

Acostumei-me a admirar sua presença naquelas tardes noite, quando chegava a bordo de suas camionetas imponentes e trocava palavras com Nilton do Aerobar pitando um cigarro, com a elegância que só perdia nesse gesto, para nosso indefectível Humberto Flores, as vezes ladeado por seu irmão Vespasiano, nosso deputado doutor, que me fez ver tudo claro quando a miopia se instalou em mim décadas atrás.

Hamilton Lopes, não pontuará mais surgindo de repente como um cometa, ora casmurro, ora iluminado e iluminando os ares, terras e águas, como uma fonte de luzes multicores. Seu imenso coração sem maldade e a força de um destino inexorável autorizaram pudéssemos oferecer nós dois, a duas criaturas ternas, hoje homens feitos, no meu sentir sem reparos, no tempo e nos cantos que a vida permitiu, gratificante atenção paternal.
Junto com Xangai, seu primo, ao menos aqui neste plano atual não entoaremos mais as cantigas do parente menestrel e outras tantas que embalaram nossas farras em tempos já bem idos. Desta época ouço sua voz sofejando timidamente “tu me acostumbrastes a todas estas cosas”, mesmo porque, frente ao artista aplaudido em todos os palcos do país, nossas vozes nada mais eram do que débeis sussurros em desafino.

França, o Teixeira, não soltará mais suas voz metálica e sua velocíssima fluência verbal, nos microfones dos rádios e tevês, nas bancadas das Assembleias, até Constituintes, nos plenários, principalmente do Tribunal de Contas do Estado, onde pude com ele conviver neste derradeiro quinquênio admirando sua performance, mesmo quando soavam insanos seus pontuares polêmicos.
Não gritará “ferro na boneca”, não intitulará ACM, o Pelé branco das construções e depois o defenestrará. Não se entusiasmará com as plateias e não levará as sessões plenárias das tardes de terças e quintas a debates infinitos, às vezes sem lógica, mas, confesso, a meu ver interessantes, na forma de “fazer corar até frades de pedra”, um dos seus preferidos jargões. Não ofenderá, não se sentirá ofendido, não acusará nem se defenderá, não demandará, não será demandado. Calou-se em definitivo.

Sergio Sotero, não lavrará mais flagrantes, não cuidará de investigar, não comandará diligencias, não concederá entrevistas. Sua vibração que pude conhecer desde quando ingressou na casa, a partir da primeira hora em que assumiu o cargo de Delegado de Polícia, não será mais sentida.

A vestimenta que guardava o espírito guerreiro capitulou, quando o coração, responsável por bombear a seiva da vida que irrigava seu corpo decidiu parar. Por ironia ou não, esta interrupção da atividade vital se deu justo em sua segunda casa. A Delegacia. Sim, porque o homem de polícia – e Sotero o era – faz do canto laboral, às vezes até seu primeiro lar.

Em frente ao mar de Itapuã, justo na Décima Segunda Delegacia Territorial, Sergio decidiu escrever, como o almirante batavo, seu ultimo despacho. Veio-me à mente a frase: “O oceano é único túmulo digno de um Almirante Batavo”. Foi-se como um pássaro, num canto onde por muito tempo deu a vida, quando em vida.

Ao lembrar a recente passagem destas figuras com quem pude conviver, em forma de homenagem a todos que se constituíram, cada uma do seu jeito e no seu espaço, pessoas muito caras a mim, me obrigo a refletir sobre a nostalgia de não mais poder abraçá-los em vida. Porém, vale dizer da certeza do quanto valeu lhes ter como pares, seres capazes de me ter feito melhor e de ter permitido com que bebesse na fonte das suas virtudes.

Sim, porque falíveis como somos todos, naturalmente tinham que fazer fluídas suas fraquezas nas brotas das suas humanas formas de agir. Mas, aprendi a sublimar as ações positivas, sobretudo daqueles que considero, na certeza de que suas falhas não podem superar os seus defeitos. Do contrario, não conviveria com quem quer que seja.

Esta melancolia que começou no lembrar do Isac poeta e se findou em pensar no policia, me conduz à tristeza, não por que eles se foram. Creio firmemente, apenas suas vestes surradas ficaram, as almas imortais seguem o rumo dos caminhos que depois de necessários resgates, os fará colocados em plano de superioridade benfazeja.

Minha aflição tem a ver com uma polícia moribunda. Apesar dos tantos valores existentes nas duas casas percebo certa catalepsia institucional. Não enxergo uma instituição vibrante, participativa, dedicada, comprometida, determinada, altiva, independente, soberana nos propósitos e, principalmente, hierarquizada.

Os ocasionais acertos são fruto de ações isoladas, ou ocorridas ao talante da sorte – esbarrão, como se diz na gíria da casa. Nesta hora, super capitalizados pelos aproveitadores de plantão, peças que precisam estar em evidencia, à custa de imensos sacrifícios dos que não dormem. O poder fascina, então é preciso enganar, aparecer, posar de dono, de responsáveis por aquilo que não fizeram, até porque, não sabem fazê-lo. O que aprenderam mesmo foi mascarar estatísticas, argumentar com sofismas, tudo no afã de não cair de um pedestal sem base.

Mas, assim como tenho certeza no transcender da existência, por isto, não duvido, certamente em breve estarei com estes amigos que se foram recentemente e outras tantas criaturas a quem amei e que já nos deixaram há tempos, confio que a polícia que amo esteja apenas sofrendo de um ataque cataléptico.

Acredito, num futuro próximo ela – a polícia – acordará deste sono patológico, posto liberta das garras dos incompetentes, resgatando uma plêiade de homens abnegados, manietados impiedosamente, sofredores não apenas por força de suas dores intestinas, e sim, mais doridos ainda por assistirem o clamor das ruas, nas vozes de um povo que não suporta tamanha insegurança.
Neste tempo, como se abranda minha dor ao ver fugidos meus quereres, na crença de um mundo etéreo onde tudo é luz, se abrandará minha saudade de uma polícia que faz, porque, certamente voltará a fazer.

Salvador,
25 de julho de 2013.
Valdir Barbosa


Uma Resposta para “Saudades”

  1. PAULO PIRES

    Mestre Valdir Barbosa,

    Congratulações por sua crônica maravilhosa, lembrando essas grandes figuras que não saem, jamais sairão dos nossos pensamentos.

    Não sabia que o Mestre era aproximado do Isaac Nunes Filho. A última vez que saí que esse grande Amigo fomos a uma churrascaria e enquanto ele bebia discretamente uma cervejinha, eu mandei ver no whisky. Mas não cheguei a ficar tonto, embora a prosa daquele Menestrel embaralhada com sua poesia sertânica (como diria Elomar) quase tenham me inebriado pela beleza.

    Reitero ao amigo minhas congratulações e vamos ver se em uma oportunidade próxima, possamos marcar com nosso amigo Josinaldo Barros Pereira, uma rodada de whisky, regada a violões de algum bom cantador. Prá matar (no bom sentido) essas Saudades. Parabéns pela crônica e até outra oportunidade.

    Paulo Pires

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