Um amanhecer na Beócia

Jorge MaiaJorge Maia

O dia amanheceu mais cedo do que costumava ocorrrer. Naquela época do ano em que a primavera ainda não havia decidido em brotar, o sol, ás vezes, em rasgo de atrevimento, surgia um pouco mais quente e brilhava mais cedo. Fenômeno próprio da Beócia, pois, situada em região serrana, mas próxima dos trópicos, permitia-se a ter um clima que oscila entre uns quês de mistérios, o que faz a Beócia aproximar-se de uma existência próxima ao realismo mágico.

Um raio de sol cruzou o pequeno espaço aberto pelo vento na cortina e feriu-me a visão, acordando-me. Consultei o relógio e percebi que era muito cedo, quatro e meia da manhã. Levantei-me e fui dar uma caminhada pela avenida florida, mas buscando um atalho para caminhar pelo centro velho da cidade e sentir o doce encanto daquelas ruas.

Iniciei a caminhada, entrecortada por momentos de corridas. De repente, não mais que de repente, êpa! Não fui original, deparei, já no centro da cidade, com duas filas enormes; uma na porta do Fórum e outra mais abaixo. Confesso meu espanto. Era cinco da manhã e uma multidão ali na porta do Fórum. Um sentimento de curiosidade tomou conta dos meus pensamentos. Naquele momento, uma brisa suave fez tremular os meus poucos cabelos e fiquei meio que paralisado, por alguns momentos, quando uma pensei que a justiça ali é tão eficaz, tão produtiva e o povo tão cidadão, que às cinco da manhã, a cidadania já estava a se realizar.

Dirigi-me a um cidadão e perguntei a que hora começava o expediente forense, ele respondeu que não sabia, devia ser às oito horas. Perguntei qual o horário da sua audiência, ele disse: eu não tenho audiência, vim aqui para registrar o meu filho que nasceu há mais de um mês e ainda não consegui, pois só distribuem poucas senhas. Mas o senhor precisa chegar aqui às cinco da manhã? Indaguei. Não, tenho que chegar às nove da noite, disse ele, se não meu filho nunca vai ser registrado.

Aproveitei e perguntei, e aquela outra fila? Do que se trata? Informou que era para “tirar” identidade e era preciso chegar as duas da madrugada, era o único jeito de ter o documento. Despede-me pensativo e meio desanimado voltei para o resort. Logo abaixo,  a policia fazia uma blitz e detinha um homem por  não ter documentos.

Segui em frente, quando deparei com a figura mais foliã de toda a Beócia: Maria Joaquina do Amaral Pereira Góes. Tentei escapar, mas fui identificado e dirigiu-se para mim, dizendo: cara você está aqui e não me visitou! Tentei mil desculpas, até convencê-la que deveria ir para casa. Seu olhar cansado pela noite perdia na farra e bêbada, também de sono. Despediu-se e levantando os braços e os olhos para o céu, gritou: então, diga que valeu, e despencou –se no chão. Chamei um taxi e pedi que a levasse para um pronto socorro. Continuei o meu retorno.

O taxista Bernardo Gamela cruzou a avenida, mas avistando-me voltou e ofereceu carona. Não quis receber pagamento pela corrida, mas combinamos que me levaria ao Fórum para a minha audiência às oito trinta.

Após a audiência, as nove e trinta, dirigi-me para o cartório do Registro Civil para conferir aquela multidão. Já não era a mesma, apenas doze senhas foram distribuídas, as demais pessoas teriam que tentar outra vez.

Ainda na porta do cartório, um ruído de helicóptero  chamou a minha atenção, lembrou-me a cena inicial de “ Apocalipse Now” . O ruído era acompanhado pelo som de “ A Cavalgada das Valquírias”  a todo volume. À distância percebi o piloto balançando a cabeça ao som da música, enquanto o passageiro levava à boca uma garrafa de champamgne francesa, cuja marca não pude distinguir.

Voltei para o hotel. Pensativo, lamentei o triste destino dessa gente humilde e sofrida. Entrei às pressas, tentando disfarçar uma furtiva lágrima. Vit. Conquista,17.07.13


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