Aprendiz de Pistoleiro

Jorge Maia

Jorge Maia

Eu era menino, e não faz muito tempo, na primeira metade da década de sessenta e ajudava meu pai na empresa Bazar Maia, de propriedade  de um tio. Aquele comércio era situado na entrada da Avenida Lauro de Freitas, na sua parte superior, ali, onde os veículos que descem da Regis Pacheco entram na Lauro de Freitas, era uma esquina e foi desapropriado para alargar a entrada da avenida.

Naquele tempo não havia muita fiscalização quanto ao comércio de armas e munições e era fácil comprar uma arma, as quais ficavam expostas na vitrine do balcão, sem qualquer outra segurança. Uma simples autorização do delegado já era suficiente para adquiri um trinta e oito cano longo.

Muitas vezes manuseei, na minha inocência, algumas daquelas armas e não me furtava ao devaneio de usar uma delas na cintura, e sendo cavalheiro errante, fazer justiça pelo mundo afora. Que bom, jamais usá-las e deixar que a justiça, quando praticada, seja por meios institucionais e nunca por sonhadores zumbíticos, uma palavra nova, que cometem loucuras pensando que realizam a justiça.

Em 1963, meu pai herdou o nome bazar maia, e a empresa passou a funcionar  na Praça da bandeira, local em que funcionava a feira local. Entre barracas de roupas, verduras e carnes, a população circulava. Era muita gente, em especial no sábado, que era o dia de feira e o bazar maia se transformava no local em que pessoas amigas e clientes guardavam suas feiras, aguardando o final das suas compras para voltarem para casa.

Era dia de violas da dupla de cegos que ao lado cantavam as suas modinhas, dentre as quais um que não sai da memória: “ Oh ciganinhaaaaaaaaaa, vamos viver viajando…” , eu via ouvia tudo aquilo com a minha curiosidade de adolescente e confesso que me encantava com a simplicidade daquela gente e dos tipos curiosos que apareciam. Eram figuras Felinianas, e eu nem sabia que Fellini existia.

Com a fiscalização e as exigências  mais  contundentes em relação ao comércio de armas e munições, meu pai preferiu não vender armas, mas sempre vendeu  munições, de modo tão natural que ninguém questionava, e eu ali, vendendo balas da CBC, era essa a marca, as quais ficavam em copos de vidro, tipo americano, e havia uma preferência pela quantidade de balas, os clientes sempre pediam seis balas, desse ou daquele tipo.

Havia um cliente especial, todo sábado um cego,era assim que falávamos, comprava seis balas “vinte e dois”. Mas o sábado, tal qual os versos de Vinícius, tinha a sua véspera, a sexta – feira, quando aquele senhor,  “ puxado” por um garoto, que era o seu guia, conduzindo-o  por uma das extremidades de um cabo de vassoura, esmolava em todo o centro da cidade, inclusive na Praça da Bandeira, e ao passar pelo bazar maia, recebia a minha colaboração, infalivelmente, pois eu sabia que aquela ajuda voltaria sob a forma de compra de “balas vinte dois”.

Não posso esconder que sempre tive vontade de perguntar por que e para que ele comprar aquelas balas. Eu ficava interrogativo, não aceitava, na minha meninice, que aquele senhor, que era completamente cego, comprasse munição. Sempre pensei em perguntar, mas, confesso, tinha medo de magoá-lo, de ser indiscreto, afinal, o cliente não precisa dar satisfação sobre as suas compras.

Resolvi treinar um jeito de perguntar, fui treinando e a cada sábado eu o atendia, cumprimentava-o, perguntava como foi aquela semana, isso até o sábado em que respirando fundo, mas com voz tímida, ainda me lembro das palavras, finalmente  perguntei: o senhor sempre compras seis balas vinte e dois, todo sábado, mas o senhor não enxerga bem, o homem era completamente cego, para que o senhor quer essas balas? Não posso dizer que o homem olhou para mim, mas que voltou –se em minha direção e respondeu: é para esse menino, referindo ao seu guia, para ver se aprende alguma coisa, esse menino não sabe fazer nada.

Fique sem respirar por alguns segundos tentando compreender aquilo, nem sei se eu poderia compreender. Ainda os vi alguns sábados. A década de sessenta já chegava ao fim da sua primeira metade, a feira mudou de local, por conta da criação do “mercadão” depois da Praça da Bandeira, em frente ao que chamamos feira do Paraguai. A dupla de cegos violeiros mudou de lugar, a ditadura foi instalada. A vida mudou muito. Não tive mais noticias daquele senhor e nem do seu aprendiz de pistoleiro. Vit. 11.08.13


6 Respostas para “Aprendiz de Pistoleiro”

  1. Livia

    Professor, parabéns pelo belíssimo texto!

  2. Ailton Andrade

    O professor Jorge Maia escreve com a naturalidade de quem conta um caso sentado no banco da varanda. Já está passando da hora de escrever um livro. Vamos aguardar.

  3. Carlos Costa

    O artigo do nobre professor e advogado Jorge Maia me transladou para a minha infância. Lembro-me do Bazar Maia na Praça da Bandeira, um pouco depois da G4. Todos os sábados eu ia para a feira com a minha mãe e ficava no Bazar Maia. Minha mãe ia fazendo as compras e as colocavam num cantinho do bazar e eu ficava tomando conta.
    Lembro também do seu pai, um senhor muito calado, porém educado e gentil que sempre estava vestido com elegantes camisas de linho similares as famosas guayaberas cubanas.
    Parabéns professor pelos seus belos textos fluidos e inspirados.

  4. Carlos Roberto

    Caro Professor,

    O menino guia, felizmente não aprendeu o ofício que o cego tentou incentivar. Hoje ele é garçom, muito conhecido em Conquista. É o Valter garçom, presente em muitos eventos em nossa cidade servindo com presteza e profissionalismo os convidados e participantes.

  5. jose carlos

    gostei muito dos texto meu pai comprou muito espoleta na loja maia para ispingarda jose santos sao paulo

  6. Edivaldo Ferreira

    Ufa ! Lí o artigo preocupado. Pensei que aprendiz era meu nobre amigo e autor do texto, Jorge Maia.

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