É bom quando a elite mostra sua cara

Hendye GracielleHendye Gracielle

É bom quando a elite brasileira mostra a sua cara. Nos episódios mais recentes da badalada cena política nacional, a elite brasileira assumiu a alcunha de Classe Médica. E esteve muito bem representada pelos indivíduos que foram aos aeroportos hostilizar os novos médicos entrantes no país. Não há que se falar numa “pequena parte”; foi uma amostra representativa da classe representada, assim como os políticos que ascendem a Brasília são uma amostra representativa, em seus laivos de usura, dos valores arraigados na população que eles representam (sim: nós, o povo).

 

“O todo sem a parte não é todo

A parte sem o todo não é parte

Mas se a parte o faz todo, sendo parte

Não se diga que é parte, sendo todo

(Gregório de Matos)

 

Ficou difícil? Assim: Brasília é o nosso espelho; os habitantes de seus gabinetes são uma parte do todo que é a nossa população, e espelham os valores médios (ou medíocres) de nossa própria sociedade. Assim também: o jornalista que escreveu sobre “médica com cara de empregada doméstica”, os senhores de branco que chamaram de escravos os médicos cubanos, e outros exemplos ad infinitum, são um espelho da elite – branca, rica e heterossexual (fora de casa, pelo menos) – que sempre ocupou os espaços de prestígio na sociedade. O exercício da medicina é um desses espaços, mas há outros, como o dos industriais, grandes empreiteiros, latifundiários, magistrados… Ousassem incomodar a uma dessas classes, e veríamos cenas semelhantes, diferindo apenas o traje branco pelo de terno e gravata, ou pela bota e espora. Ou talvez com um pouco mais de discrição: não dariam a face a tapa, usariam para tanto lobistas de bastidores. Por isso é que é bom quando a elite brasileira mostra a sua cara.

A falta de recursos para o sistema público pode ser o principal fator do problema da saúde no Brasil (ou melhor, o dinheiro é muito, porém muitas mais são as torneiras de desvio da fonte até a foz). Isso, entretanto, não deveria eximir os médicos de bem exercerem o seu mister. Um médico recém-formado não pode dedicar dois anos de sua promissora vida profissional para atuar compulsoriamente no SUS (sendo remunerado para isso, entenda-se bem)? Não pode perder o brilho de seu status passando alguns anos no insosso interior do Brasil, a não ser por um salário que exorbite do padrão razoável de remuneração profissional? Não se pode adiar por algum tempo o rentável retorno do investimento que papai fez nas mensalidades das faculdades privadas, ou nos cursinhos preparatórios para as faculdades públicas? Talvez o problema seja a concepção da medicina como um investimento, não como um compromisso ou vocação.

“A praça é do povo / como o céu é do Condor.

É o antro onde a liberdade / Cria águias em seu calor!”

(Castro Alves)

Quando a Medida Provisória 621/2013, que institui o Programa Mais Médicos, ainda estava em discussão, um representante do Conselho Regional de Medicina foi ao jornal local de nossa pequena cidade vituperar contra a proposta. Foram concedidas todas as atenções aos argumentos do distinto senhor; questionado, entretanto, sobre quais seriam as alternativas para os problemas que deram origem à norma, não soube dizer. Ajustadas as proporções, creio que ainda se aguardam as sensatas contribuições que o Conselho Federal de Medicina possa dar aos debates políticos do setor.

A este propósito, interessante notar que antes das prolíficas manifestações populares que envolveram o país nos últimos meses, não se viam os médicos saírem às ruas para protestar por avanços na saúde pública brasileira. Mas alto lá, não sejamos injustos: não só os médicos, mas também outros grupos historicamente conformistas, tiveram surpreendentes surtos de militância nos últimos meses, embelezando a estampa das manifestações que tomaram as ruas do Brasil. A praça é do povo, como o céu é do Condor, mas doravante há de se delimitar uma área VIP, com sombra e água fresca pra quem não está acostumado ao calor de 40° do sol de todos os dias.

É cômodo pegar o bonde já em movimento: às vezes, não se trata de lutar por melhores condições de vida para todos, mas de garantir a manutenção da reserva de mercado já existente. Não há novidades; é postura típica dos caras-pálidas das superiores castas tupiniquins, de que a maioria dos médicos é uma pequena parte, não o todo.

“Minha terra tem palmares 

onde gorjeia o mar (…)

Minha terra tem mais ouro

Minha terra tem mais terra”

(Oswald de Andrade)

O todo é a mesma elite, por exemplo, que se diz vítima de preconceito porque não se enquadra em nenhuma cota instituída pelo governo. A reclamação, a bem da verdade, tem fundamento: quem sempre teve a cota total dos privilégios, públicos e privados, não vai mesmo gostar de dividir o espaço com essa gente pobre, negra e deficiente que se cansou de Palmares e quer tomar o Brasil. E imagina quando, das universidades públicas brasileiras, começarem a sair bacharéis com cara de empregada doméstica, com cara de escravo, com cara de cubano, com cara de Brasil. Você sabe com quem está falando? Vai ficar mais difícil saber.

Pensando bem, solidarizemo-nos com as alvas criaturas que terão seus empregos usurpados pelos doutores estrangeiros. Tadinhos! Deve ser mesmo muito difícil ser “bem nascido” num país excludente como o nosso. São as lamúrias de uma elite que pensa que é dona do Mundo – e do Brasil, por extensão.

Hendye Gracielle

(tentando aprender com Oswald de Andrade a não ter medo de polêmica)


8 Respostas para “É bom quando a elite mostra sua cara”

  1. Tairone Ferraz Porto

    Simplesmente… FANTÁSTICO!!!

  2. Nilton Ormundo

    Nossa! Perfeita sua colocação… compartilho da mesma indignação que você. Oxalá! que a população desperte contra estes hipócritas disfarçados.

    Mais médicos e menos corporativismo!

  3. Ivonildo

    Prefiro milhões de vezes, essa, considerada pelos comunistas “elite”, tratando do nosso povo, do que ver meu país trocar as cores da sua bandeira, do que ver hoje essa gente “pobre, negra e deficiente cansada de Palmares”, roubando e assaltando nosso país; e ainda pegam nosso dinheiro para ajudar só aqueles países que estão alinhados aos seus princípios políticos e ideológicos, princípios esses, que não passam de interesses escusos. Prefiro essa odiada “elite”,odiada por essa escória da sociedade, que não se conformam em terem sido desmascarada com a queda do muro de Berlim e a dissolução da famigerada e sanguinária União Soviética no Leste Europeu, regimes totalitários, onde uma minoria ínfima era a burguesia, desfrutando assim das delícias do primeiro mundo capitalista, e onde pelo menos 99% da população vivia em regime de escravidão, como é o caso de Cuba hoje. Regimes falidos. Os fatos estão aí e contra fatos não há argumentos; qual é o regime político dos países de primeiro mundo, onde os políticos são verdadeiramente empregados do cidadãos? Comunismo, Socialismo? Me mostre apenas um. Todos do primeiro mundo são Capitalistas. Se o povo brasileiro quer políticos justos primeiro precisa ser justo e em vez de brigar por Futebol, Carnaval, Bolsa Família, Bolsa o diabo a quatro e por tudo que se chama festa, que briguem sim por trabalho, produtividade, competência, especialização e pressionem mesmo que custe a própria vida, nossos governantes a acabarem com suas regalias, altíssimos salários e cumpram com o dever que lhes cabe. Mas infelizmente o que vemos, apesar de não ser de maneira generalizada, mas talvez na maioria da nossa gente, é o desejo de estar no lugar dos políticos para fazerem o mesmo que eles.
    interesses escusos

  4. Oscar Alho

    Na prática, o que o Brasil assiste hoje é à quebra de um monopólio – e, por isso mesmo, a gritaria é tão forte. Às entidades de classe interessa regular a oferta de profissionais no mercado e, assim, preservar uma situação que gera altos rendimentos a profissionais escassos. Aliás, exatamente por estarem altamente demandados nos grandes centros urbanos, onde a vida é mais agradável do que nas periferias e nos rincões, os médicos brasileiros desprezaram a grande maioria das bolsas oferecidas pelo Mais Médicos.

    A crítica conservadora dirá que o caso da saúde é diferente e não pode ser tratado como mercadoria ou qualquer outra atividade. Ocorre que a experiência cubana já aconteceu em vários países – e deu certo. Em Portugal, por exemplo, a população aprova a atuação dos profissionais.
    Belo artigo, concordo plenamente com a articulista. Só os idiotas que não querem ver. Essa turma de branco se acham intocáveis. Vá em qualquer hospital e vejam como a grande maioria dos ‘doutores’ cumprem os horários. Só aparecem para atender os coitados doentes altas horas do dia, às vezes nem aparecem – é como um vapt vupte de desrespeito com as pessoas humildes. Lanço o desafio, vá a qualquer hospital e pergunte: que hora o médico chega? Vão ouvir a resposta só depois de 11h30 ou depois das 16h00.
    SÃO BEM VINDOS OS ESTRANGEIROS: Vejam um trexo de um artigo sobre o Mais Médicos.
    De acordo com nota do Ministério da Saúde, os médicos que virão ao País têm, em média, 15 anos de experiência. Certamente irão contribuir para resultados que, no futuro, farão com que a crítica atual seja lembrada apenas como um grito corporativo diante do fim de um monopólio.

    Parabéns a Hendye pelo brilhante artigo

  5. Rubevaldo Silva

    Grandiosíssima colocação. É isto mesmo.

  6. marcia lima

    Que venham Mais Médicos… que venham os os portugueses… os argentinos… os peruanos… que venham com a alma e com o amor… é disso que precisamos.

  7. katia andrade

    Quanto ressentimento da pessoa aí de cima.!
    Parabéns pela coragem do texto, hendye.
    Temos sim que colocar nossa opinião, sem medo de polêmica.

    Texto brilhante!

Os comentários estão fechados.