Se tem algo que inventaram que é, de todo, instigante, intenso e emocionante, é gente. “Gente olha pro céu”, cantou Caetano. A gente daquela terra do lado de lá, cantou a pedra do dicionário. “Você é cômico”, desdenhou Diego da minha filosofia humanitária. “O que sou é mítico, quase um ícone”, respondi atrevido. Sou um barato, ainda que, por vezes, seja também um chato. “Sou um moderno intelectual que vai ser rememorado”, autoironizei minha chatice lúcida. “Megalomaníaco!”, disse em tom mais alto. “Sou um otimista, com autoestima na medida”, tentei amenizar. “Tomara, então, que você seja o que, afinal, pensa ser”, concordou com certo sarcasmo. “Eu não penso ser, Diego. Eu sou”, respondi, mantendo a serenidade. “Oui, oui”, riu. “Je peux vos aider à être comme moi”, finalizei à francesa. Gente é assim, quer saber o um, o lugar, e qual rio desagua no mar. Escrevi para Manno num pedaço de papel, em meio aos seus rugidos pernambucanos e as batidas do esqueleto negro baiano, e só não declamei porque havia tanta gente, e tão perto de mim. Dos escritos, eu dizia assim…No todo que escuto e reverbera, no todo que se faz eco, no todo que há um. No único que diz veementemente aos ventos todos que circulam aos todos, sim, há um.
Nos números que se contam em palavras tão incontáveis quanto as estrelas se perguntam quantas são, há o tamanho do universo em expansão. O um. Nas reticências de qualquer pensamento difundido, defendido, vamos todos nós, e os outros, gentes, os que se resumem num. Do concebido algo pobre do expressado, cor de cobre também se rima rico o tal do ziriguidum. Manno, gente é muito bom. Só com gente, e sons-imagens, pra vida ser inteira. Gente, às vezes, é mais de um plural. Tal qual Pessoa, “nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo”. E ainda que a vida minha se divida entre o cômodo dos dias e a gaveta das utopias, quero me fazer presente, franco, sem restrições (e até ser venerado, por que não?). Quero Bárbara um dia desses, e ser disposto num porta-retrato de alcova ao piano-adágio da expressão solitária de Anderson. Um dia desses, quero ser fotografado divindade por Purki. Com o rosto rasgado, dilacerado, delgado, apaixonado em verbo de larga escala. Quero um nu assinado, descolorido a lápis por Alex num quarto de hotel desativado. Quero Di. Na parede do meu próprio quarto. Eu, gente de coração vagabundo, acautelando o mundo em mim. Qual gente, em qualquer idade, não quereria ser um emblema adesivado, um Vitor Hugo abravanado na janela do museu-moldura da verdade, publicado na história? Quem não quereria receber uma ligação de alguém que há tempos não vê, só pra escutar “De repente, saudade”? Gente assim pintaria até os cabelos e deixaria a barba por fazer. Faria qualquer reverência de sagração. Um autoreflexo. Um não. Gente quer comer. Matheus, o rotulado, letrado, profeta profano, quer comer e beijar em público. Satisfação. Meu gato persa quer comer. E eu quero ser comido, cozido vivo, por Nara, Marina, Jamille, Ellinha, Bethânia, Selma, Renata, Cecília, Leilinha, Vandet, Suzana, Luiza, Marcela e Didi. Gente que brilha por aqui. Bem ao lado da Tenda, no Beco, de pernas cruzadas, pedindo um isqueiro que acenda. Você precisa andar com a gente, Vitor. Aqui bem pode ser a melhor cidade da América do Sul. O Xamps Elisées em véspera de feriado. A alta madrugada, o meu mirante autodenominado. Se oriente, rapaz. Sua barba correta, seu agasalho escuro, seu olhar semipuxado, tudo tão bem pensado como o sopro do seu riso de cigarro. Passam uns, ficam outros. Fica um tino de ansiedade não comedida. No afã desta incoerência, passa, ao seu lado, a vida, como os hebreus atravessando o Jordão. Passa a madrugada e nem um olhar seu encontrando, do meu, um vão. Num impulso irrefletido, brusco e inesperado, eu o segui. Em noite de uma estrela só, o marcador sinalizando treze graus. Gente só quer ser feliz, Vitor. Depois de meio-dia, em dia agora raro de sol, Iguarias. À minha frente, fios de cabelo cortados sem afilada simetria. Vontade que havia de tatear. Pelos espessos no rosto delgado, pelo mundo, pela porta afora, pelo canto do olhar. Vi, do cristalino, fitado em mim, gente, estudando, talvez contemplando. Daí chegou Macário, e Tina, e Saldanha, e todo o gesto-poema-inteiro de Luiza outra vez. Toda aquela gente pensando, dançando, lavando roupa, batendo o Tambores e amassando o pão. Sorri, vertendo meu melhor encanto. Indaguei se era alguém especial um tanto e, de novo, sorri. E, se não conservei imagens de outrora, é que fico com esta hora de idas, vindas, da realidade de agora, dos escritos sinais em números numa nota de dois reais. Meu mais novo talismã guardado no bolso. E segui, caminhando a esmo. É assim mesmo, gente quer sempre prosseguir. Em meio à turba cantando em coro, procurando aquela entidade. Sem oscilar, eu vi. Gal. De 74 e dos anos 90. Tínhamos planos, eu e Gal. Na mesma afluência, ela também me viu. Buscamo-nos. Eu, num abrigo púrpura. Ela, acetinando. E fomos. Porque só sei viver mesmo se for assim, intenso, em noite que não tem fim. Roupa azul espalhada no chão, corpo inclinado, habituado em demasia ao outro, aberto, plano como a palma da mão irreprimível. Ou da língua em francês, com gosto de Amarula, crível, sussurrando “ma langue dans votre tatouage, mon petit”. Uma sardanisca correndo próxima ao ventre frio. E o líquido seminal rente ao meu peito se reproduziu. Ah, aquela luz no cio da manhã invadindo. Gente, como usurpou o meu tempo aquela luz! “Baby, why you look so sad?”, cantou baixinho Cibelle, ou teria sido Ayade? “Porque vim-me embora”, respondi. Vesti meu agasalho com marca de cigarro uma última vez. Porque uma hora a gente tem mesmo que sair, despedir. “Um dia a gente pega a mala. Dia, caminho, sol, ânimo, medo. Na noite seguinte, risco, faísca, estrada, o nada. O sol, o sol, o sol”. Ofuscando a vida dos outros, levando-a embora feito onda salgada de mar. Faz tempo que o dia não se rasgava assim. Estamos em maio e faz tempo que não saio de mim. Esse espetáculo das ruas. Das gentes todas que querem luzir. Depois que inventaram o tempo e todas estas pessoas do mundo para o passar das horas, só mesmo silêncio, segredo. Minha diáspora agora é solidão, sério! E lá estava eu me abraçando. Gente, quanto doce mistério.