Intransigência e intolerância

Valdir Barbosa

Valdir Barbosa

Porque Katia, Emanuel e Emanuele tinham que estar numa mesma via naquele fatídico – sobretudo para eles – 11 de outubro. Porque a médica foi chamada antes de sair da academia que frequentava, no bairro onde ocorreu o incidente, para cumprir mera formalidade retardando sua ida e, quem sabe, modificando seu trajeto fazendo com que o tempo e o espaço, neste caso, madrasta e padrasto pusessem as três indigitadas figuras, frente a frente, no palco da tragédia.

Porque os lindos jovens, bem formados pela natureza e, ao que se sabe, bem criados pelos responsáveis por sua educação afrontam uma pessoa desconhecida, por força de mero descompasso, em manobra de transito. Neste transito desvairado que enlouquece a todos, dia e noite, numa Salvador de um ontem tão calmo, capaz de refletir, naquele tempo, a fleuma boa de nosso saudoso Caimi, o inesquecível Dorival, de embalar os versos e canções do nosso centenário Vinícius de Moraes – agora o volume de veículos nos dificulta passar a tarde em Itapuã – , transito este transformado hoje em fábrica de neuroses abissais.

Porque uma mulher madura, mãe e esposa extremada, pelo que se comenta, responsável por fazer, ao talante do seu ofício, olhos maltratados enxergarem melhor, fica cega de repente, apenas porque uma palavra áspera, um chute na porta, ou um objeto arremessado na capota de seu carro, por garoto atrevido, lhe transforma repentinamente fazendo-a tomada de uma atavismo incontido, decompondo alguém educado e culto, que passa a ser uma fera bruta e ignorante.

São perguntas que não querem calar, depois que as notícias reverberadas por todos os órgãos de imprensa enfocam a tragédia que consumiu a vida destes três seres, a médica Kátia e os jovens Emanuelle e Emanuel. Em fração de segundos, se fez transformado, colocado diametralmente pelo avesso, naquela sexta feira sinistra, o destino de pessoas até então serenas no seu caminhar, donas de planos, projetos, realizações e sucessos que habitam a existência de qualquer integrante da classe que são oriundos.

Tanto pior para os jovens e seus amados parentes. Viviam, o rapaz e a moça montados na esperança, trafegando nas ruas dos seus desejos e perspectivas iluminadas, belos e saudáveis, inteligentes e pródigos, mas, em fração de segundos, o carro dirigido por Kátia atinge a motocicleta que lhes conduzia, arremessando-os a um poste, depois de rápido desentendimento entre eles, minutos antes e carrega para plano distinto a vida de duas criaturas, ainda na plenitude do seu alvorecer nesta terra.

A certeza de que a vida transcende e que nada acaba aqui, não reduz a impacto pela perda irreparável de vidas ainda muito por viver. Esta convicção de eternidade pode e deve servir tão somente de alento, para os que ficaram e purgam por amargar a dor de uma separação tão brutal e traumática.

Mas, não se pode esconder que quem se pôs, neste caso, por sua ação, na margem oposta do rio que divide, marca e separa as margens da conduta de homens e mulheres fazendo com que, por suas próprias escolhas, impensadas ou não, estejam entre os certos ou errados, os corretos ou incorretos, os que delinquem e os que cumprem a lei, sofre também desde o primeiro instante em que o vento de sua vida virou e lhe fez estar na contramão da correnteza, de igual sorte junto com os seus, as agruras de um pesadelo dantesco.
Não busco aqui considerar sua intenção de provocar o evento morte, não discuto a questão da mera culpa suportada na imprudência, ou imperícia, não trato do dolo, eventual, ou não, na vontade deliberada por assumir o risco de um resultado tão grave, quando após provocação de qualquer espécie Kátia avança em velocidade vertiginosa, consoante registrado pelas câmeras e repetidamente reprisado nas imagens dos jornais televisivos, sobre a moto dos garotos atingindo-a por trás, fazendo destruídas literalmente a vida daqueles, porém arrasando também a sua.

Trato dos porquês, dos motivos, dos senões, para tanta insanidade. A toda hora somos imprensados contra nós mesmos, no bojo dos nossos conflitos intestinos, então, frente a nossos semelhantes, na esteira da insensatez ferimos o carinho, aleijamos o respeito, esquartejamos a consideração e matamos, com pensamentos, palavras e obras, o amor que precisamos nutrir diuturnamente para como nosso semelhante.

A falta de carinho, o desrespeito, a desconsideração que muitas vezes começa dentre de nossos próprios lares, as discórdias, as disputas por motivos tão fúteis e até por razões complexas, pouco importa, a necessidade de nos mostrarmos poderosos diante do outro têm o condão de agredir nossas relações, na maioria das vezes justo com aqueles que nos são tão caros, maculando a mais pura das verdades que deve comandar as ações da humanidade, o amor. Se assim ocorre com os chegados, fácil imaginar com desconhecidos.

Despojados deste espírito amoroso pregado pelo Rei dos reis que tudo aceita, tudo releva, tudo considera, enfim, tudo perdoa somos instados a cavalgar em pelo, nos violentos corcéis da intransigência e da intolerância, desconhecendo que montados nestas bestas incapazes de aceitar rédeas estaremos sempre aptos a cometer equívocos diante do próximo. Há que saber: as desinteligências podem caminhar da mera agressão verbal, até redundar em dramas como este, capaz de destruir as vidas de Emanuelle e Emanuel, como também, de certa forma, da Dra. Katia Pereira.

Que Deus acolha os partidos, na sua mansidão, que recolha os cacos partidos do coração daqueles que lhes ama e os amará por toda a eternidade fazendo-os colados, concedendo-lhes a compreensão e o consolo.

Que Ele ilumine a mente de quem não soube transigir e tolerar fazendo-a ponderar, mesmo tardiamente, neste caso, concedendo-lhe a reflexão e o resgate, na correnteza de sua própria culpa, ao apoio insuperável dos seus entes queridos.


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