Asdrúbal e a Gênia Osa

Valdir Barbosa

Valdir Barbosa

Asdrúbal, o belo, nascido em Cartago, na Tunísia, duzentos e quarenta e cinco anos antes de Cristo, foi considerado um dos melhores generais da região, no seu tempo, talvez apenas superado pelo cunhado, Aníbal, que o sucedeu no comando das tropas cartaginesas, após ser assassinado. Tendo reencarnado algumas vezes depois desta época, finalmente, no século XX retorna, para continuar seu processo de expiação e resgate, mal sabendo que, desta feita, ao beirar cinquenta anos de vida seria submetido a mais difícil das provações, de todas quantas precisou purgar nesta sua trajetória milenar, em busca da sabedoria libertadora.

Trazendo consigo sempre guardado o espírito guerreiro das priscas eras volve, neste derradeiro período, para pugnar outra vez, só que agora vestido no manto da legalidade e suportado nos recursos hodiernos deste novo tempo, incumbido de combater o mal. Desde muito cedo integra as forças e serve com lealdade os comandos aos quais se fez subordinado, da forma como ocorreu com o primeiro ancestral, quando atendia ao sogro Amilcar Barca. Por influencia das inexplicáveis arrumações cósmicas, seu genitor nos tempos modernos guarda no nome, as mesmas iniciais do pai da esposa daquele Asdrúbal, no passado distante. Este, Adoniran Barbosa. Não se tratou do imortal criador de página impar do nosso cancioneiro, Trem das Onze, mais criou os filhos, com carinho, numa Saudosa Maloca.

O Asdrubal de agora, nascido em berço humilde ascende por seus próprios méritos, tornando-se conhecido e reconhecido por conta dos seus feitos. Respeitado e considerado ocupa postos importantes, sofre revezes, renasce das cinzas e, apesar de um tanto quanto perdulário amealha posses, dentro do que lhe é possível poupar, sem, contudo deixar de viver com intensidade provando dos prazeres e delícias do cotidiano, sempre que pode, principalmente quando retorna das batalhas de um dia-a-dia atribulado.
A despeito de não possuir o Asdrubal da era cibernética, a beleza encantadora do seu primeiro antepassado se fez dono de um harém considerável, muito embora mantivesse as prediletas guardadas, cada uma delas, em espaço temporal único exclusivo, no qual lhes deu seu amor incondicional, enquanto durou a afeição. Mas, o destino lhe faria libertar de aquário onde se achava reclusa, uma gênia. Sim, porque se o vernáculo moderno impõe, por decreto, o vocábulo presidenta, para quem manda, também assim se pode nominar o gênio feminino.

Pode ter sido esta figura, Olimpiadas Epiro, Boudicca – Rainha da Idzen -, Cleópatra, ou Agripina a jovem, da era anterior a Cristo, assim como Leonor da Aquitânia, Isabel I de Castela, Elisabeth I – Rainha da Virgem -, Erzsebet Bathory – Condessa de Sangue -, Cristina – Rainha da Suécia -, Catarina II, Maria Antonieta, ou Alexandra Romanova, a última Imperatriz da Rússia, doze das famosas mulheres que pontuaram na antiguidade. Basta observar a postura dos ícones femininos de antanho e será fácil saber quais as vestes terrenas foram suas capas nas eras sumidas. Naquelas que marcaram pelo autoritarismo e intransigência, ao invés das demais chegadas a gestos de concórdia e tolerância esteve ela presente, no seu caminhar pelo infinito anterior. Mas, certo é, seu pai lhe deu nome singular: Osa

Não se sabe corretamente onde foi ele buscar tal designação, entretanto, comentários sempre existiram, quanto à propriedade nela contida. Por ter esta sua filha, dentre outras tantas, legítimas ou bastardas, também atiradas de forma semelhante, um gênio por demais incontrolável, a junção da palavra que indica seu tipo sabe-tudo, aliado ao nome, Osa, permite a corruptela: geniosa. Impossível determinar a razão da sua explosiva irascibilidade, quem sabe fundada em fatores genéticos, ou fruto de traumas gravados no seu íntimo, como tatuagem, desde a tenra idade, marcas impostas a todos nós viventes, sem que qualquer dos mortais possa ter estado a salvo de influencias externas, condicionadoras de nossos comportamentos vida afora.

Seu pai, próspero comerciante de uma cidade interiorana nordestina, dono, entretanto, de caráter explosivo, capaz até mesmo de reações que o tornavam violento e perigoso desentende-se com a família deixando Osa ainda pequena, impondo-lhe e aos seus sérios sacrifícios, mesmo porque, logo depois falece prematuramente. A despeito do seu estilo, enquanto pode conviver com a caçula, lhe oferta tratamento diferenciado, inclusive em relação aos demais membros da família, mas, certo é, no despertar da sua adolescência tendo perdido todas as regalias, se obriga, como fizeram os demais irmãos, a trabalhar duro para buscar seu sustento e suportar as despesas do lar, onde foi criada por uma mãe extremosa.

Osa sempre buscou ascender, seu espírito igualmente batalhador buscava constantemente progredir. Procurava sem descanso as alturas, como se espelhasse seus propósitos no dito do poeta dos poetas baianos, Castro Alves que recitou em, QUEM DÁ AOS POBRES, EMPRESTA A DEUS: “Eu, que a pobreza de meus pobres canto, dei aos heróis – aos miseráveis grandes -,eu, que sou cego, – mas só peço luzes…que sou pequeno, – mas só fito os Andes”. Para o padrão feminino não é pequena, ao contrário bem lançada, linda como a mais bela das Cleópatras, olhos grandes, cor de mel que veem longe, além de possuir estatura moral elevadíssima, espelho sem jaça da mãe que lhe criou, no poço de enormes sacrifícios. Portanto, mesmo sem ser cega, também pedia luzes, ainda que alta só fitava os Andes.
Quando o Asdrubal dos novos tempos, depois de ter percorrido quatro cantos do mundo, a conheceu, se tomou de paixão avassaladora. Ele já prateando os cabelos e ela no fulgor da juventude em fúria. Osa laborara em tudo quanto foi possível, para ser digna de si mesma buscando oportunidades capazes de lhe fazer crescer, da forma como sempre quis. O guerreiro a encontra despachando num pequeno aquário, integrando com atividade as comunicações de grande centro e age como se a libertasse duma clausura. O amor que lhes contamina, apesar das diferenças de ambos, sobretudo na plataforma do agora, impõe ao guerreiro retirar o gênio da lâmpada. Assim, promessas mesmo tácitas feitas pela liberta, de que teria todos os seus desejos cumpridos iluminam as esperanças de Asdrubal e, verdade seja dita, eles se realizam ano após ano depois disto. Mesmo porque, as relações entre ambos, não são de servo e senhor.

Osa, na sua determinação se agarra a todas as oportunidades alçando, em pouco tempo, voos sem limite imaginável, tanto no campo intelectual, como na esfera espiritual. De repente ela sabe o que ele não sabe; entende de tudo mais do que ele consegue entender; enxerga caminhos que ele não consegue enxergar; encontra saída, onde ele apenas vê curvas intermináveis de labirinto invencível. Então, o batalhador se orgulha por isto e exulta nas vitórias e excelências alcançadas pelo gênio, até pouco tempo aprisionado, agrilhoado nos ferros da falta de oportunidade, que tantas vítimas tem feito mundo afora. E aprende com a aluna, e se locupleta nos seus argumentos e se purifica nas suas preces. E vê, quando o corpo gasto, pouco a pouco se aquebranta, o quanto valeram a pena tantos sacrifícios, tantas batalhas, muitas ainda por vencer, então rejuvenesce.

Todavia, mesmo nos jardins mais floridos e olorosos, estão espinhos capazes de ofender os que caminham entre camélias e damas-da-noite, gardênias e rosas, buscando tão somente seus buquês. De quando em vez Osa aparentemente involui, então, corajosamente desafia Asdrúbal posando de ingrata aguda. Usa até mesmo seus conhecimentos, adquiridos na esteira do seu aprendizado técnico, para diminuir e atacar o guerreiro, ofendendo-o no que pode e da forma do quanto aprendeu, em seus tempos bárbaros passados e presentes.

Nesta hora, certo atavismo assola os sentimentos de Asdrúbal e ele pensa brandir sua espada que degolou tantos oponentes na Tunísia antiga, em direção da eventual inimiga íntima. Os desejos de destruição, de morte, trazem gosto de sangue à boca do guerreiro. Porém, uma mágica acontece e ele busca sua arma atualmente mais usada. Nela redige, em tom de desabafo, estas palavras, mesmo sentidas, em forma de carinho. Então consegue rir, sem escárnio, da gênia Osa. E balbucia, como dizem seus conterrâneos. Osada.
Decide assim sair de fininho e busca, no regaço do mar que circunda sua terra, o consolo e o sal que abandarão suas dores temperando sua vida tão especial. Neste embalo espera o tempo certo de voltar. E agradece a Deus por se sentir crescido. E não duvida que a geniosa, um dia, assim como ele o faz agora, desprezará as bestas, alabardas, lanças, falconetes, martelos e trabucos, enfim todas as armas medievais que ainda dispõe no seu arsenal. Destarte, quando este tempo vier, ela finalmente deixará de fitar e chegará aos Andes.

Salvador, 23 de novembro de 2013
valdir barbosa


Os comentários estão fechados.