Vale dos desvalidos

Jeremias Macário

Jeremias Macário

Vi uma senhora de idade na fila do SUS, tentando marcar uma consulta médica, clamar para o repórter que não tinha nenhum orgulho de ser brasileira. Dentro do hospital público, que mais parecia campo de concentração em tempos de guerra, vi um jovem numa maca do corredor da unidade dizer que aquilo ali não era um hospital, mas o inferno. Foi operado de apendicite “por engano” e estava há quatro dias sem se alimentar direito e sem receber uma visita do médico.

Vi na fila do recadastramento do bolsa família vários idosos e mulheres aflitas com crianças nos braços em desesperados choros incontidos, com medo de perderem o auxílio que os mantêm ainda na pobreza do vale dos desvalidos, ou dos esquecidos. Vi aposentados catando o minguado “benefício previdenciário” do mês para comprar um remédio na farmácia. Do outro lado, vi o lucro astronômico do sistema financeiro dando gargalhadas em suas confortáveis poltronas.

Vi no vale dos desvalidos nossos meninos e jovens fumando crack nas esquinas e asfaltos sombrios da morte. Vi as mesmas enchentes dos outros anos arrastando casas, soterrando pessoas e deixando um monte de desabrigados que logo depois são esquecidos e diluídos nas promessas vãs. Vi obras inacabadas e abandonadas que seriam feitas para levar água ao nosso árido sertão.

Não é uma boa época para se comentar tais tipos de fatos macabros e desumanos, mas não podemos nos calar diante do descalabro a que chegou a saúde em nosso país, que pode ser motivo de orgulho para os afortunados do dinheiro e do poder. Para a maioria do nosso povo, aqui continua a ser o vale dos desvalidos, ou dos esquecidos, como quiser. Na situação atual, a saúde tornou-se prioridade maior que a educação, que também anda combalida e nos envergonha todas as vezes que divulgam índices comparativos com outros países.

Nos últimos resultados do principal exame internacional da educação básica (o Pisa), em matemática o Brasil ficou em 58º lugar entre 65 países, e olha que houve uma melhora no ensino. O Brasil está atrás do Cazaquistão, México e o Uruguai e só à frente da Colômbia e da Jordânia. Nas provas do ano passado, entre alunos de 15 a 16 anos, o país está em 55º lugar em leitura, e em ciências, 59º. Mesmo nas últimas posições (os líderes são os países asiáticos), nosso governo ainda encontra alguma coisa para comemorar.
Na economia nos sentimos também encolhidos com um “pibinho” que oscila entre 1 e 2%, com uma infraestrutura precária, de baixos investimentos, rombo fiscal, déficit externo da conta corrente e juros mais altos do mundo. Como consolo, o nível de desemprego tem se mantido nos 5,5%, mas há uma desconfiança nos rumos da economia com os gastos públicos que fazem engordar as mordomias dos poderes.

Nesse vale dos desvalidos, como no inferno de Dante Alighieri (1265-1321) em “A Divina Comédia”, todos os dias somos fritados aos poucos pelo fogo da corrupção, e nem os programas de combate à pobreza ficam de fora dos criminosos saqueadores. Aqui, o crime compensa e dá lucro. Num município do Ceará fizeram até um documento, tipo acordo com firma reconhecida, onde são bem elaborados os planos da corrupção, garantindo as divisões equitativas do roubo entre seus membros participantes.

Mais um ano vai passando e o outro vai chegando, deixando em nós uma sensação de vazio de que os homens lá de cima não querem escutar as nossas vozes ecoadas nas ruas, gritando por justiça, dignidade, mais segurança pública e reformas radicais na política. As mensagens de boas festas e ano novo estão cada vez mais coladas ao consumismo do capitalismo predatório.

Os mensaleiros foram presos, mas nem isso nos deu a certeza de um novo país passado a limpo onde deixe de existir o vale dos esquecidos, para dar lugar à igualdade social, política e econômica, sem essa ilusão de cotas que diferenciam a cor da pele e não à competência através de um aprendizado de qualidade.

Fazendo pouco caso do clamor, os donos do poder prometem-nos mais circo com a copa mundial de futebol e mais eleições com cartas marcadas, financiadas com o dinheiro sujo das roubalheiras empresariais. A vida pública transformou-se num espaço mafioso de políticos corruptos que dilapidam nosso patrimônio. Quem são mesmo os vândalos?

Por curiosidade, quando Pandora abriu a caixa enviada por Júpiter a Prometeu, lá no fundo só restou a esperança. Ainda é esta dádiva que tem nutrido a vida dos esquecidos, mas contrariando a mitologia grega, muitos não acreditam mais que o Brasil seja o país do futuro. De tanto abusarem, a esperança também pode se perder no vale dos desvalidos, e ai “o bicho pode pegar”.


Uma Resposta para “Vale dos desvalidos”

  1. Viviane Lelis

    Execelente texto, Jermias Macário!!!

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