Pílula do Aixteruh – Número 64

Marco_Antonio_Jardim

Marco Antonio Jardim

Depois de meses, passando por inverno, outono e solstício de verão, volto atrás pra pensar o caminho trilhado. Antes disso, vou buscar o significado literal de amor, pra distinguir dos incômodos alheios. Amar, até onde penso, não tem nada de patético, nem é tão ridículo quanto as cartas de Pessoa e soa muito maior que simplesmente comover. Não amar me parece reflexo de um mundo febril. E não dizer a este mundo que há amor, se há amor, me parece, aí sim, um tanto quanto trágico, pra não dizer desleal. Pois que amo. A Deus, amo alguém, e o próximo de alguém, ao meu gato persa, e ao chão que piso quando acordo dia após dia, ao tempo, ao vento, à liberdade, ora aqui por perto, ora perdida na esquina do meu coração. Eu amo e grito, adoravelmente brando, suave, mas sem qualquer tempo ajustado. E – por que não? – grito no Facebook! Eu subo a serra, mesmo que num olhar distanciado, vejo o horizonte azul, os parapentes flexíveis e suspensos no ar, o mar invertido, plácido, ladeado pelas rochas, cactus, flores, e grito: amo! E fotografo esse aceno e esse som com exclamação. Não há como refutar, entende? Amar é uma inclinação ditada pela lei universal.

É um gosto vivo. E também os cheiros no ar, de misto duplo ou de pitangas, de batata doce, de pão, de torta de limão, de trufas, de pizza até. Amar é uma mesa posta, uma afeição inteira, do tamanho de um abraço demorado. “Você me abre os braços e a gente faz um país”. Amar é isso! Via de regra, os capítulos de minha vida giram, assim. Iguarias tratadas como, talvez, um bem comum. Uma verdade que bate à minha porta de quando em quando. Ou quando eu mesmo bato à porta alheia. Uma parada no Posto da Solidão pra tomar um suco industrializado (afetuosamente apelidado de stricnina), uma ocasional latinha de cerveja num banquinho de uma praça, chocolates na loja de departamentos ou um saquinho de doces secretamente (ou nem tanto) deixado numa varanda. São, sim, intenções veladas (quase bobas, de tão belas) de determinar meu sentimento, minha orientação. Meu amor. À boca miúda, afirmam que estou delimitado ao drama. Uma ou duas pessoas. Não tem importância. Penso que é choque de quereres. Minha resposta a esse prenúncio chuvoso? Quem define os outros, se limita. Melhor mesmo é demarcar o caminho. Começa na ladeira da academia, passa pelo asfalto onde tem um desenho semelhante a giz em formato de coração, desce pela praça onde os cachorros ficam soltos, segue pela rua da árvore de pitangas, dobra à esquerda atravessando a placa sinalizadora de “Pare!” e não para ao meio-fio onde costumeiramente sentava, culminando no muro antes vermelho, no portão e naquele chão que era de cimento cru. Deitar ali dá saudade, irmã do tal amor. Pareço um estrangeiro impróprio? Um extra-terrestre? Ah, seu moço aí do alto, do disco voador. Me leve com você, seja pra onde for. Ao sabor da brisa, me leve. Num respiro profundo, num pranayama, me leve. De dentro pra fora, de fora pra dentro, apurando o instrumento, leve, leve, leve.

Gnomo

E, se ainda assim eu não tiver inspiração, faço como minha geração: remixo. Mas continuo a amar declaradamente. Se gostam, ou não, “whatever, forever”, mudem a faixa. “You don’t know me. Bet you’ll never get to know me”. Na minha trilha sonora de malhação, também tem canção de amor! E na piscina, presto atenção nas conversas da raia ao lado. Foi assim que tudo de eterno começou. E na meditação, na posição de lótus ou na invertida, felicidade, perdão, abundância, gratidão e amor. Destas coisas, sim, tenho infinita saudade. E dos abraços apertados (raros, mas vivos), dos afetos e cócegas e risos inesquecíveis, do agasalho dado, da corrente de prata emprestada, do presente eterno que não abro mão de ter sustentado quase ao peito numa oração permanente, dos gnomos, das amenidades dos dias. Se, por hora, é pra eu me obrigar a ficar em silêncio, eu fico. Por amor, diga a todos que fico. Se é pra eu derramar uma lágrima aqui ou ali, choro. Não tenho vergonha de ser. Mas sigo pisando no passeio de cada rua que faz parte daquele caminho, como que num tapete de flores vermelhas e amarelas, e finjo que nem é comigo, que é só com a vida. Minha gratidão a este silêncio, pois. E quando bate a saudade, nem vou pro mar. Eu só fecho os olhos e sinto um braço e uma mão tocando os meus. Deve ser o vento. Pois que reafirmo aqui o amor, sabe? Um outro mundo assim é possível. E se faço algo errado, eu peço desculpas, e reinicio o computador do mundo (mesmo que não funcione a webcam). O mundo também toma forma no pensamento. Eu sou ainda muito jovem de corpo e muito mais de espírito. Santo? Não. Mas sou de duração indefinida. Sou astrólogo, acredite! Ou macumbeiro, como graciosamente se diz. Mas eu não sou drama! Sou só fama e nada mais. Adoro subjetivar o que é naturalmente sem graça. Se deve ser da idade? Não. É intensidade. É saudade. É coisa fácil e leve, na alma do meu paladar. Então, por obséquio, deixa eu amar.


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