Marco Antônio Jardim
De quando tive a consciência despertada para o sentido da espiritualidade, até hoje, mesmo que estacionado em algumas práticas, percebo sinais. E eles me percebem também. É um fenômeno presente, um vestígio do que se pensa, do que se quer, um artigo de fé. Uma mancha na pele, uma cicatriz. Um aceno, um gesto. Uma etiqueta para fora na camisa do principesco, uma assinatura cursiva. Ou qualquer outra manifestação que pareça presságio, prenúncio. É também o futuro. “O futuro não é um lugar que se chega. É um lugar que se constroi”, alguém disse, como um sinal. Estes lugares são como postes de luz e advertências para mim. Um gato na porta do meu quarto. Uma borboleta na ponta do guarda-roupa. A estranha deferência com que minha mãe arruma meus pertences. Um agasalho que não perde o cheiro, deixando as coisas visíveis. Uma sensação sentida ao mesmo tempo em dois lugares diferentes por duas pessoas que se amam.
As mensagens do dia que me aparecem em trechos de revista, páginas de agenda, pedacinhos de papel. O mundo inteiramente meu criado nos sonhos, nos desdobramentos, com vozes sussurrando: “tu vens, tu vens, eu já escuto os teus sinais”. E eu não duvido, apesar de, por hora, quase esquecer. É como o nascer do sol no horizonte de uma manhã de domingo, ou mesmo o pôr do sol fotografado da janela do corredor (fotografia perdida no celular assaltado, mas memória em sinal permanente). O deus Sol egípcio, Amon-Rá. Diz-se que ele abria as pálpebras, o dia despertava e se espreguiçava. Daí ele se vestia, ia para a barca de ouro e seguia, silencioso, pelo oceano, distribuindo luz e calor. Mesmo que ele chorasse, suas lágrimas eram sinais de boa sorte aos homens, ao mundo. O dia amanhecendo é uma bela marca e um meio para sorrir. E para trasladar em palavras, como fez Leminski: “Uma semana, um mês, um ano não dão para a saída. Nada passa igual a um dia”. Nesta soma de dias (ou os últimos cinco meses, pra ser mais preciso), de sinais, como o dobre dos sinos ainda não finado, caiu a chuva, cairam pitangas, e, agora mesmo, enquanto escrevo, é um sinal que eu tenha encontrado uma imagem em que minhas mãos se juntam em oração. É o verão que ainda não se encerrou. Espero eu, com serenidade, que tais indícios, permitam-se fechar este estio no Espírito Santo (vide o nome, já um sinal). Lembro que, há alguns dias, estive caminhando sobre os paralelepípedos de uma rua mais estreita da minha cidade, carregando minha mochila e minha saudade, sob chuva fina misturada às lágrimas. Eu era um átomo no átimo do tempo. Sabia que a chuva passaria, então me enchi de poder, conhecimento, certeza e simplicidade. Era um sinal vindo dos céus a me lembrar que eu sempre passei por ali.
Algumas pessoas também passavam por mim, cheias de vapor d’água, sorrindo com os olhos. Talvez, elas, compreendendo que aquele caminho que eu seguia tinha, ele próprio, uma história madrugal para contar. Eu vivi os últimos meses em rede, como uma inteligência autônoma, livre, caminhando livre, conectado ao mundo por um simples aparelho de mãos. Vivi interligado e, sobretudo, em sintonia fina com uma das pessoas que mais amo e que reconhecia, em tempo real, todo passo meu dado, mesmo em meio à maior confusão funcional do mundo, mesmo num apagão. Eu via, e vejo, pelo celular, ou não, pela música escutada no fone de ouvido (canções que, cada uma delas, tem uma recordação afetiva), pelo folhetim, pelo próprio olhar dedicado às pessoas em volta, de variadas cores e línguas, e dizia para mim mesmo: “eu sou livre”. Então, derepente, fui agredido impetuosamente e de surpresa. Fui perseguido, fui assaltado, fui violentado na alma, refletida agora em marcas feridas no corpo. Sinal. Pareço oco (louco) nesta autoafirmação? Mas é que ainda tenho centro. Levaram-me uma das máquinas mais fabulosas da humanidade no estágio atual (a dizer: um iPhone 5), mas ainda me oriento pelas estrelas. Pelo mapa de Guimarães Rosa. “Mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando”. E amando. Este sentimento que empurra as criaturas, mas que nem sempre elas se dão conta, como o vento a impelir uma embarcação. Naquele instante, eu estava pensando em viajar (se, de fato, eu for), já ansioso para ver o mar (e para abraçar por longos minutos abrindo a represa da saudade), e estive, por volta das 22 horas, com um companheiro na saída da academia. Não convivemos nos mesmos círculos, mas, em sintonia, ficamos a conversar por alguns minutos sobre o tom da vida, sobre a importância que damos ao dia de hoje. E logo nos despedimos com a frase “carpe diem”. Ele ainda me ofereceu uma carona, um sinal. Virei a esquina sozinho e…agora estou onde estou. Vivo. Amor é isso, não é? Um pouquinho de qualquer coisa sem nome que dá um descanso, um respiro à loucura. Fico pensando se “o outro lado” tão retratado pela angústia de Diane Arbus (lembra que te falei desta fotógrafa, Niltinho?) não fosse a figura principal. Se fosse apenas o dia em sua Rolleiflex, ou se ela tivesse uma máquina digital. Para mim, o sujeito de uma fotografia é a possibilidade de ver tudo nos mínimos detalhes, no dia. Dos pedacinhos de tafetá dos enfeites à cor azul do céu e âmbar da areia, do mar, do coração no asfalto, da expressão do meu corpo em evolução, do cactus que agora cuido delicadamente, da tentativa de registrar minha alma e das manifestações divinas. O que me dói (e muito) é, com o assalto, eu ter perdido este álbum de recortes dos meus dias e um tiquinho da sensação de acreditar ser livre. Rastreamos, identificamos, ativamos um barulho, choramos até. Mas, numa clara mensagem de resignação, os dispositivos desta pequena pérola estão offline. Quero ser, então, eu mesmo, editor das coisas que acesso, das pessoas que sigo, das redes que crio, do conteúdo que sorvo. E você, Deus, vem chegando para brincar em meu quintal. Sim, eu já escuto os Teus sinais.