A brecha

Jorge Maia

Jorge Maia

Não recusei o convite de Hamlet de la Mancha e fui passar o carnaval no sitio do Gurutuba. Exigi duas coisas: que o clima fosse morno, com chuva de nível mediano e alguns raios e trovões e que no café da manhã tivesse fofão e chiriba, importados de Aracatu. Ele respondeu que tudo seria como eu pedi, mas, não dispensava a minha presença, pois haveria uma conversa sobre cultura popular e queria que eu contasse um daqueles casos da Beócia.

Conversa animada. Antônio Leal falando de cordel, Paulo Pires tocando Bossa Nova, Marcos Cabeleireiro comentado Breaking Bad, gente falando do neologismo de Guimarães Rosa e da implicância com as palavras que algumas pessoas manifestam.

Com esta conversa deram-me a oportunidade de contar um fato cujo mote era a palavra brecha. Sempre fui implicado com a palavra brecha. Não que a palavra brecha não tem a sua poesia. Imagino alguém iniciando um verso: O sol iluminava as brechas das montanhas. O que ocorre é que a vulgarização daquela palavra tornou-a ruidosa e despossuída de qualquer componente de seriedade.

É comum alguém falar nas brechas da lei, e em momento de dificuldade pedir que achem uma brecha. O conteúdo psicológico da palavra brecha lembra malandragem, esperteza, uma solução a qualquer custo, daí a minha implicância com a palavra.

Fui procurado por um cliente na Comarca da Beócia para acompanhar uma dissolução de sociedade de fato, antigo nome de união estável, quando homem e mulher vivem em condição de marido e mulher, sem que sejam casado.

Durante anos prevaleceu a idéia de que o patrimônio formado pelo casal em sociedade de fato pertencia apenas ao homem, com a compreensão de que só ele trabalhara para a sua formação, sem se levar em conta o trabalho doméstico da sua companheira. Situação jurídica só resolvida com a súmula 380 do STF do ano de 1964 e consolidada coma Constituição de 1988.

Ponderei com o cliente que o fato da sua companheira trabalhar em casa, cuidando dos filhos, fazendo as refeições para ele, lavando as suas cuecas e demais afazeres domésticos, era a sua participação na construção do patrimônio comum e que ele deveria partilhar o patrimônio com ela. Não era justo que depois de tanto tempo ele trocasse a mulher de quarenta por duas de vinte, como ele antes referira em tom de galhofa. Pediu-me que encontrasse uma brecha. Respondi que eu não tenho brecha para oferecer a ninguém, nem o meu escritório, certamente ele encontraria uma brecha junto a sua companheira. Foi assim que respondi, não queria perder a piada, mas sabendo que poderia perder o cliente.

O cliente pediu um prazo para pensar em minha orientação e retornou três dias depois. Meio sem graça, mas entendendo a realidade, lamentou: “puxa doutor, eu trabalhei tanto para construir esse patrimônio dando um duro lá fora e ter que dividir”. Pensei rapidamente, e mesmo arriscando perder o cliente, eu disse: é verdade, você dava um duro danando lá fora, mas a noite, em casa quem recebia o duro era ela. Explodiu em gargalhada e aceitou fazer o acordo.Gurutuba. 010314


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