Burocracia na Beócia

Jorge MaiaJorge Maia

Depois de padecer por muitos anos de doença intermitente, o Sr. Sousa faleceu. Assim era conhecido e tratado: Sousa. Sua morte causou muita tristeza entre amigos e conhecidos, era uma pessoa muito querida em toda a Beócia.. Mas a vida é assim e sempre haverá partidas definitivas.

A morte do Sr. Souza foi um daqueles fatos comuns do cotidiano que não chamaria a atenção de ninguém, não fosse um pequeno engano cometido pelo cartório ao realizar o registro do óbito. Na certidão, Sousa foi escrito com  z, quando, no caso, era com s. Foi um Deus nos acuda.

Ao apresentar a certidão de óbito e a guia de sepultamento, a administradora do cemitério perceber que no RG do falecido Sousa era com s, mas na certidão e na guia era com z, solicitando que voltassem a cartório para reparar o engano. A viúva, os filhos e os amigos tentaram ponderar; que depois fariam isso, que se realizasse o sepultamento e em tempo oportuno fariam a retificação e não seria por isso que não haveria o enterro de Sousa. A administradora sorriu de modo fúnebre e disse que  alei seria cumprida, não haveria sepultamento.

Era uma situação desagradável.Alguém foi até o cartório e o servidor disse que agora só com autorização do juiz, que constituíssem um advogado para tal.O impasse estava criado, a administradora não cedia e repetia de modo irritante que não haveria sepultamento, pois com ela  a lei tem que ser cumprida, não enterraria Souza, em lugar de Souza.

O tempo passava e já era o segundo dia do impasse, todos revoltados, ninguém fazia mais nada, a vida precisava ter continuidade em sua labuta normal e todos ocupados com aquele que aos olhos de pessoas normais era um absurdo. No desespero, foi sugerido que constituíssem um advogado. Assim foi feito.

O advogado entendendo que era uma obrigação de fazer e que era matéria de consumo pois se tratava de prestação de serviço ingressou com uma medida no Juizado Especial, o que foi rejeitado pois o Juiz entendeu que era matéria de Registro público e que deveria haver a retificação do registro do óbito, remetendo o pedido para uma varas do Registro Público. O juiz, em razão da urgência do caso, despacho para que o Ministério Público se pronunciasse.

De posse dos autos o MP se manifestou alegando trata-se de um caso de alta complexidade, pois Sousa e Souza era pessoas diferentes, que a administradora esta correta e que o sepultamento não poderia ser feito, pois bastava observar que a pronuncia com z era bem diferente, bastava  ouvir que em espanhol o z tem uma pronuncia de s, mas de modo diferenciado e que Sousa, nunca seria Souza.

O fato ganhou manchete nacional e a mídia explorava de todo modo, causando grave constrangimento à família. O juiz entendeu que  a situação envolvia uma questão de proteção do idioma e que na verdade o nome deveria ser escrito com s e z na segunda sílaba, considerando a origem da palavra e que deveria haver retificação na certidão de óbito e no RG. A família enlouqueceu. A viúva descontrolou-se  e a “escrivona”, dona  Pomponet do Canto Triste chamou a policia para prender a viúva por desacato a servidor público e chamou o policial de plantão para prender a pobre mulher.

O policial era Zeca Acende Tição que arrastou a mulher pelos cabelos e desceu todos os andares do fórum, pela escada, uma vez que os elevadores estão quebrados. No térreo depararam com uma manifestação do MST- Movimento dos sem Túmulos- que solidário à família, protestava.

O dia seguinte era carnaval. A cidade estava tranquila, quase sem transito. Era meio dia quando o BE/TV anunciou que um grupo sequestrou o caixão de Sousa. Alguns dizem que foi a família, com a ajuda do MST- Movimento dos sem Túmulos.

Corre a lenda que Sousa foi sepultado no Vale do Gurutuba à sombra de um pé de umbu muito frondoso e que nas noites de lua, quando o vento sopra mansamente, costuma ouvir na voz do vento um som parecido com: Souzsaaaaaaaaaaaaaaaaa.

Cinco anos depois, o Tribunal da Beócia devolveu o processo, reformando a sentença, afirmando que o nome era Sousa e que se realizasse o sepultamento de imediato. Pensei muito sobre essa história e lamentei muito pela família, mas fiquei, de modo egoístico, feliz, por saber que no Brasil é bem diferente. VC150314


4 Respostas para “Burocracia na Beócia”

  1. Uelma Prado Duarte

    Mei querido colega Jorge Maia. EXCELENTE! A releitura da nossa rrotina judiciária…

  2. Anamaria Maia

    O que mais poderia dizer sobre esse texto senão que ele está simplesmente maravilhoso???

  3. Sínthia Tenório

    Infelizmente Jorge esta é a situação por qual passam tantos brasileiros na hora de tentarem sepultar seus entes queridos, e ainda tem quem enfrentar as longas filas e até irem de madrugada pegar senhas para registrar o óbito daqueles que não foi conseguido registrar no dia do falecimento.Seu texto perfeitamente maravilhoso tem também o rosto da BUROCRACIA DE VITÓRIA DA CONQUISTA.

  4. Valter

    Professor Jorge essa crônica policial, judicial e social ocorrida na Beócia me lembrou os tempos de sala de aula na UESB com sua oratória e forma acadêmica tão excelentes. Parabéns e que Sousa tenha o descanso merecido.

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