50 anos do Golpe Militar: Em defesa da democracia, um relato sobre tempos difíceis

Edwaldo Alves

Edwaldo Alves Silva

I – Minha história.

Participei de diversos debates sobre os 50 anos do golpe militar e, principalmente,  sobre os 21 anos da ditadura que sufocou completamente as liberdades civis e políticas no Brasil. Tive o prazer de escutar e falar para públicos heterogêneos, alguns na sessão especial da Câmara Municipal, para  membros conscientes e ativos do Levante Popular da Juventude, universitários da UESB e, agora, preparo-me para fazer meu relato sobre aquele período histórico para estudantes do Colégio Oficina. Na verdade, sinto-me como um observador privilegiado de momentos vividos, quando opiniões políticas e ideológicas eram abafadas, e ações poderiam custar prisões, torturas e mesmo mortes. Como é bom sentir que palavras, opiniões e ações que antes eram crimes, hoje são requisitadas e ouvidas com o maior respeito e interesse.

Claro que os debates sobre os “50 anos” com meus interlocutores muito me ensinaram e permitiram uma compreensão melhor da ditadura militar, que alguns, acertadamente, classificam como civil militar. Mesmo sem querer polemizar, entendo que esse simples conceito não expressa todo o conteúdo do regime imposto ao país em 1964.

Não tenho o objetivo de detalhar os crimes da ditadura, as cassações de mandatos eletivos, o desrespeito às leis, a perseguição às organizações sindicais e populares, o casuísmo institucional, as prisões ilegais, as torturas, os assassinatos e os desaparecimentos dos corpos daqueles que foram eliminados sob as mais bárbaras sevícias. Creio que a literatura e os depoimentos existentes são bastante ricos em detalhes e comprovações. A denúncia do que sofri,  enviei por escrito e está arquivada nos autos da Justiça Militar desde 1976. Um pequeno resumo está transcrito no livro “Brasil: Nunca Mais”, organizado pela Arquidiocese de São Paulo e publicado pela Editora Vozes.

Minha intenção é analisar algumas questões que surgiram nos debates promovidos frente o cinquentenário do golpe de 1964. Algumas, de forma envergonhada, sub-reptícia, tentam diminuir o caráter ditatorial e antinacional dos governos militares. Outras análises, no meu entendimento, não conseguiram ligar a ditadura com o processo histórico-político que se desenrola até os dias de hoje. Após meio século decorrido é mais fácil compreender situações, cenários políticos, interesses pessoais e de classes, conflitos internos e até atos insanos que buscavam criar condições políticas favoráveis para determinados objetivos políticos.

Nesse artigo também não pretendo discorrer sobre os erros cometidos pelas correntes de esquerda no período pré-golpe. Muito menos as formas de lutas assumidas pelas forças anti-ditatoriais no enfrentamento aos governos militares. Creio que as lições que todos aprendemos não correspondem mais ao processo democrático vigente atualmente no Brasil. Manifesto-me como um simples militante de base, que na época dos chamados “anos de chumbo”,  movido por convicções políticas e sociais,  foi levado a  envolver-se cada vez mais nas lutas contra a ditadura e pelas liberdades democráticas, inicialmente como militante, e posteriormente como dirigente do clandestino PCB.

II – 1964 – O início: golpe pela ou contra a democracia?

 Alguns ainda defendem a tese de que em 1964 ocorreu um contragolpe. Ou melhor, tratou-se de uma ação defensiva para garantir a democracia e a legalidade contra os objetivos de um presidente (João Goulart) legitimamente eleito. Ora, todos sabem que os golpistas de 1964 eram os mesmos de 1954 que levaram o presidente Vargas ao suicídio, sacrifício pessoal que abortou a manobra. Os mesmos generais tentaram impedir a posse do presidente eleito JK, golpe  que fracassou pela ação enérgica do General Lott que obrigou os conspiradores a fugir de navio para outras plagas. Após as desastrosas ações em Aragarças e Jacareacanga durante o governo de Juscelino Kubitscheck, em 1961, com a renúncia do presidente Jânio Quadros, mais uma vez tentaram derrubar as instituições brasileiras impedindo a posse do vice-presidente, Jango. A reação do então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, e a luta pela legalidade sustentada pelo povo em todo o Brasil, frustraram os planos ditatoriais, porém não impediram a  farsa   do parlamentarismo, revelando, já naquele momento, que o presidente Jango possuía uma personalidade propensa ao conchavo, mesmo em detrimento das aspirações populares. Em diversas situações de acirramento político a origem de classe do presidente falou mais alto.

Em 1964, portanto, viu-se o triunfo de um objetivo golpista largamente nutrido pelos interesses norte-americanos desde o pós-guerra. A CIA, o IBAD, o IPES, a Embaixada Americana, a Aliança para o Progresso, o Acordo do Trigo, a USAID, enfim, a utilização sistemática de todos esses instrumentos comprova que o Brasil era uma das principais preocupações do governo norte-americano em seu Departamento da Defesa. Naquele período vivia-se o auge da guerra fria. A bipolaridade surgida no pós-guerra fazia tremer o sistema capitalista internacional e os grandes interesses do complexo industrial-militar. Os países que formavam o chamado “bloco do socialismo” desenvolviam a retórica da coexistência pacifica, da convivência de regimes sociais diferentes e do desarmamento geral e completo. O movimento operário defendia a democracia, a soberania nacional, a luta pela libertação nacional e a emancipação das colônias subjugadas aos impérios coloniais. Jovens de todo o mundo se encantavam com líderes políticos africanos como Patrice Lumumba, Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Nelson Mandela, Zamora Machel e tantos outros, que hoje figuram na galeria dos grandes heróis do século XX. Os partidos comunistas avançavam eleitoralmente em países europeus, principalmente na Itália e na França. A enérgica reação  norte-americana e seus aliados também estendeu-se por  todo o mundo. A Europa, epicentro inicial da guerra fria, transformou Berlim em um barril de pólvora.   Contrariando a sua própria origem, os EUA apoiaram política e militarmente os governos colonialistas. Em sua própria casa, o macartismo difundiu o obscurantismo, a repressão e o desrespeito aos direitos civis, incentivando um clima de medo diante de uma suposta ameaça comunista. Guerras locais, conflitos étnicos  e golpes militares expandiram-se mundo afora. A América Latina,  sempre vista como tranqüila zona de influência americana, sofreu forte impacto com a revolução cubana de 1959. Após as frustradas tentativas de esmagar a revolução com a invasão de 1961 e a chamada crise dos mísseis em 1962, para os estrategistas americanos o “perigo vermelho” estava à porta.  Nessa conjuntura internacional de interesses econômicos, nacionais e geopolíticos, no Brasil, existiam setores importantes do governo Jango que  buscavam um caminho nacional e independente,  despertando a ira e a  preocupação do governo dos Estados Unidos e dos interesses do capital internacional e nacional.

Aqueles que menosprezam essa realidade mundial e reduzem todo o período histórico à vontade de Jango de permanecer no poder, na verdade, se equivocam na tese ou, então,  buscam escamotear a verdade para defender a supressão das liberdades democráticas realizada pela ditadura. Não se pode negar que no PCB, liderado por Luiz Carlos Prestes, era vista com simpatia a possibilidade de reeleição do presidente Jango. Em um popular programa de entrevistas na televisão,  intitulado pinga-fogo, o líder comunista admitiu explicitamente essa possibilidade, mesmo sabendo que não era permitido pela Constituição de 1946, então vigente. Hoje, considerando a situação da época, essa declaração não foi conveniente para o  projeto nacionalista e democrático. É possível que o círculo mais próximo do presidente Jango sonhasse com uma alteração constitucional que lhe permitisse disputar as eleições presidenciais marcadas para 1965. É um enorme exagero, entretanto, mesmo naquele momento, classificar tal proposta como golpista. Interessante notar que o primeiro presidente ditador simplesmente prorrogou o seu próprio mandato, e, que, atualmente o estatuto da reeleição é consagrado na Constituição Federal.  Se não o fosse, o ex-presidente Fernando Henrique ficaria mal na fita da história. Por outro lado, o PCB jamais correria o risco de defender uma interrupção democrática porque o seu principal objetivo era conseguir o registro do partido pleiteado na Justiça eleitoral. Além disso, o processo histórico brasileiro já ensinara que quando ocorriam agressões à democracia, o partido era o primeiro a ser atingido.

As forças políticas que tramavam o golpe contra o governo democrático apresentavam-se como baluartes da ética e da moralidade. Eles não se envergonhavam de essa bandeira ser empunhada, bem alta, pelo governador de São Paulo, Adhemar de Barros, cujo lema mais conhecido era “rouba, mas faz”. Ao mesmo tempo, associavam a corrupção à subversão, sendo que essa última baseava-se no fato de o governo ser parcialmente apoiado pelos comunistas. Somente as condições daquele momento, provocadas pela guerra fria,  poderiam criar situação tão absurda. Em muitos países democráticos e capitalistas da época, os partidos comunistas eram legalizados e até participavam de governos. Após o golpe militar, todos que se opunham ao regime eram considerados subversivos, presos e eliminados como terroristas. Quanto à corrupção, à falta de liberdade pública, a censura e as perseguições políticas permitiram a sua disseminação e absoluto reinado em todo o país. A corrupção pública ia desde deste o serviço de intendência das forças armadas até os luxuosos gabinetes em Brasília.

III – A suposta participação popular

Algumas teses ressaltam o caráter civil-militar do golpe e da consequente ditadura.  Procuram destacar o apoio que a sociedade brasileira teria fornecido ao movimento militar. Logicamente, seria impossível o golpe ser deflagrado e permanecer tanto tempo no poder se não tivesse uma base social mínima. Essa análise, porém, não pode prescindir da estrutura de classes, de frações e de segmentos sociais objetivamente existentes na sociedade e que, na essência, permanecem inalterados até os dias atuais. A situação internacional sempre influiu  diretamente nas questões nacionais, a participação  do capital financeiro, os interesses geopolíticos e  econômicos e as relações militares entre o Brasil e os EUA   desenvolvidas na 2ª guerra mundial,  cimentaram  e associaram os interesses do capitalismo  com as forças reacionárias brasileiras. Basta verificar a oposição sistemática que os grandes empresários e fazendeiros faziam ao governo Jango. A CNI, a FIESP, os banqueiros, parte da cúpula militar, a grande imprensa, os partidos conservadores e os governos estaduais como da Guanabara (Carlos Lacerda), de Minas Gerais (Magalhães Pinto) e de São Paulo (Adhemar de Barros) pregavam abertamente a derrubada do presidente Goulart. Por outro lado, o governo tinha amplo apoio entre os setores populares. O movimento sindical comandava as lutas trabalhistas, organizando-se horizontalmente nas categorias de trabalhadores, nos pactos, nas federações e confederações até a criação do seu órgão máximo: o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT). Os camponeses e trabalhadores agrícolas, além das Ligas Camponesas, organizavam-se em sindicatos e formaram a Confederação dos Trabalhadores Agrícolas (CONTAG). Os estudantes tinham na UNE e na UBES seus órgãos máximos de representação e luta. O campo democrático e popular, mesmo criticando as conciliações do presidente Jango, apoiava as reformas de base propostas pelo governo. A igreja católica encontrava-se politicamente dividida: ao mesmo tempo em que apoiava e organizava ligas eleitorais católicas, marchas da família com Deus pela liberdade, fundava a Ação Popular – AP, organização democrática e progressista formada basicamente por católicos, que teve importante papel na luta contra a ditadura. A classe média, influenciada pela intensa propaganda anticomunista, paulatinamente, foi sendo seduzida pelas propostas golpistas até tornar-se verdadeira massa de manobra dos objetivos ditatoriais.

Creio, portanto, que mencionar o apoio da sociedade brasileira ao golpe e à ditadura não pode deixar de considerar que a sociedade não é homogênea, não é um bloco uniforme, pelo contrário, é formada por classes, frações de classes e segmentos sociais que vivem em conflitos e conciliações permanentes. O governo da época possuía grande apoio popular organizado nos órgãos representativos dos trabalhadores, estudantes e camponeses.  Inegavelmente, depois dos militares,  os grandes empresários e os latifundiários eram a maioria no setor social que mais apoiou, manteve e se aproveitou da ditadura militar. Caso, não houvesse profundo equilíbrio na correlação de forças em 1964, certamente os golpistas tentariam derrotar o governo nas eleições presidenciais de 1965. Afinal, naquele momento, os grandes favoritos eram o candidato de centro, Juscelino Kubitscheck e o direitista Carlos Lacerda.

IV – Porque derrubaram Jango

O governo de Goulart não caiu porque era fraco e incompetente. Ao contrário, tinha propostas objetivas para o desenvolvimento nacional e para o fortalecimento democrático. Estava muito longe de pregar o socialismo. Porém, possuía o objetivo (talvez ilusório) de seguir um caminho de desenvolvimento nacional autônomo, independente do capitalismo internacional e que eliminasse ou diminuísse as desigualdades sociais na estrutura agrária e no capitalismo brasileiro. Suas vacilações e conciliações, provavelmente, decorriam da ilusão de que poderia contar com a sua própria classe para executar essas mudanças.

As reformas de base propostas pelo governo Goulart, com exceção daquelas executadas no período democrático, têm validade até agora.  A reforma agrária, parcialmente realizada por pressão dos movimentos sociais, teve a sua importância submetida aos interesses do agronegócio. A reforma urbana avançou um tímido passo com a promulgação do Estatuto da Cidade. A reforma bancária foi absorvida pelas incorporações e fusões bancárias que criaram grandes instituições que só fortalecem o capital financeiro. A limitação das remessas de rapina dos lucros do capital estrangeiro dobrou-se à ciranda financeira internacional, estimulando o neoliberalismo globalizante. É exatamente no campo político institucional, contudo, que o período pós-ditadura mais avançou. Hoje, os praças e subalternos têm o direito de votar e ser votado. O voto foi ampliado para os jovens de 16 até 18 anos. Todos os partidos podem ser legalizados, as organizações sociais gozam de autonomia, os cargos eletivos são preenchidos por sufrágio secreto e universal, direitos básicos de etnia, de gênero, das crianças e adolescentes, idosos, de pessoas com necessidades especiais, de diversidade sexual e a defesa dos direitos humanos são garantidos, pelo menos, por diplomas legais. A ditadura militar atrasou por muitos anos as conquistas desses direitos e todos temos o dever cívico de impedir retrocessos que possam ameaçá-los.

V – As disputas internas e a distensão lenta, gradual e segura

Sempre me intrigou a demora vivida pela sociedade brasileira para tentar chegar à verdade sobre os crimes e desmandos do período ditatorial. A Comissão Nacional da Verdade, instituída para apurar esses casos, foi criada apenas em 2011, isto é, 26 anos após o término da ditadura. Isto quer dizer que decorreu mais tempo para começar a desvendar os crimes do que o próprio tempo de duração. Enfim, nunca é tarde para começar!

No entanto, creio que essa tolerância descabida decorreu do próprio processo negociado de transição para a democracia. Não houve a necessária ruptura que levasse os criminosos para o banco dos réus. Sem dúvida, faltou Nuremberg para esclarecer toda a verdade e punir os eventuais culpados.

Sem me ater às situações grotescas e ridículas ocorridas no processo de formação e desenvolvimento da ditadura, até porque não acho graça no autoritarismo, na violência e no terror cometidos contra o povo, acredito que é importante a avaliação das disputas e contradições internas do regime, desde o seu nascedouro. O início da largada dada em Minas Gerais pelo Gal. Mourão Filho (se intitulava uma vaca fardada) contrariou profundamente os organizadores golpistas, o que foi comprovado pela reação do Gal. Castello Branco que considerou aquela ação despropositada e intempestiva. Com o triunfo da quartelada, Mourão Filho foi simplesmente descartado e o Gal. Costa e Silva assumiu o poder de fato ao ocupar a cadeira de Ministro da Guerra, argumentando ser o general de exército mais antigo. Foi um autêntico golpe de mão. Com a ascensão de Castello Branco à presidência iniciou-se intensa luta pelo poder. Em toda alternância de general na Presidência da República, essa disputa agravava-se. Costa e Silva impôs-se contra a vontade de seu antecessor. Para Médici derrotar o Gal. Albuquerque Lima, a esse foi negada a 4ª estrela de general o que imediatamente tirou-o do páreo. A ascensão de Geisel foi mais tranqüila porque o ministro da Guerra era o seu irmão Orlando Geisel. Para emplacar o Gal. João Figueiredo como seu sucessor foi preciso que o presidente Geisel derrotasse o seu ministro da Guerra, Silvio Frota. Essas mudanças periódicas de generais no comando da nação não provinham de uma concepção democrática de alternância no poder, mas sim, revelava que o golpe de 1964 não conseguiu criar um líder reconhecido, com prestígio e ascensão entre seus comandados, como ocorreu em outras ditaduras.  Pode-se afirmar que as lutas intestinas pelo poder na ditadura militar não fariam inveja a nenhum Bórgia.

Descartando-se as ambições pessoais e de grupos, uma linha divisória caracterizou a disputa interna pelo poder, uma vez que ao povo e à sociedade não cabia opinar e muito menos votar. Desde abril de l964 um grupo militar identificava-se como “linha dura”, que abominava as relações políticas com a sociedade, pregava o mais ridículo anticomunismo e considerava que a simples repressão resolveria os problemas sociais e políticos do Brasil. Em contraponto, outra corrente opunha-se aos conceitos simplórios, mas extremamente nocivos e violentos da “linha dura”. Eram generais e oficiais que se reconheciam como grupo da “Sorbonne” que utilizava métodos mais sofisticados e buscavam cumprir os objetivos do regime ditatorial.

A crise econômica internacional,  da qual um dos elementos foi a elevação dos preços do petróleo, aliada às condições internas brasileiras, acabou com o chamado “milagre econômico brasileiro” do final da década de 1960 e início dos anos 70. O rei estava nu. O que restava da base social da ditadura erodiu-se completamente. O descontentamento popular provocado pelas difíceis condições de vida, as prisões, torturas, assassinatos e corrupção, desmoralizaram completamente o Sistema, desembocando, entre outros acontecimentos, na grande vitória nas eleições de 1974 do partido legal considerado oposicionista – o MDB. Nas eleições para o senado esse partido triunfou em 16 estados. Na Assembléia Legislativa de São Paulo a oposição consentida conquistou 2/3 das cadeiras. Após o triunfo militar sobre a resistência armada, o Sistema equivocou-se ao permitir um mínimo de mensagens políticas na propaganda eleitoral. O resultado demonstrou o enorme repúdio popular à ditadura militar. Pode-se afirmar que desde aquela época a esperança venceu o medo. A reação do regime, porém, não tardou: no começo de 1975, logo após a posse dos eleitos, a ditadura baixou o chamado “Pacote de Abril”, restringindo a liberdade eleitoral e voltando a cassar mandatos eletivos. No entanto, havia um problema nesse caminhar. Afinal, estava na presidência da república o Gal. Ernesto Geisel, representante maior dos opositores da chamada “linha dura”, e as medidas que estavam sendo aplicadas obedeciam às concepções desse último grupo. Não havia o desejo de retornar à democracia e ao Estado Democrático de Direito em nenhum desses grupos, mas, simplesmente, formas diferentes de encarar a necessidade de manutenção e duração do regime de exceção.

Com a opinião pública contrária, estreita base social e com profundas divisões internas na área civil e militar, os estrategistas do Sistema perceberam que era a hora de começar a planejar a melhor retirada. Nesse contexto, o Gal. Geisel anunciou que o objetivo do seu governo era iniciar uma distensão lenta, gradual e segura rumo à democracia. Creio que nem ele imaginava que esse processo iria durar tanto tempo.

Essa proposta influiu em todo o quadro político daquele momento. A maior parte da oposição legal deixou-se iludir porque sempre considerou melhor realizar pequenas mudanças do que criar situações que pudessem levar a transformações mais profundas. Entendo que a proposta de Geisel adquiriu uma dimensão e importância para o país que não merecia, porque, na verdade, apenas possibilitou um fôlego maior para a continuidade da ditadura e, de certa forma, moldurou o quadro político futuro.

Naquele momento histórico, até o clandestino PCB, do qual eu era um dos dirigentes estaduais, dividiu-se, permitindo surgir um grupo denominado “Geiselandia” pela esperança que depositava no projeto de distensão. Para ilustrar essa afirmação, lembro-me que em 1975 com toda a direção estadual e dezenas de militantes presos e torturados no DOI-Codi do 2º Exército, inclusive eu, um conhecido intelectual, também preso, lamentava-se entre surpreso e indignado: “Não é possível, o Geisel não sabe disso!” Encapuzado, pensei:  “se o Geisel sabe ou não pouco importa, só sei que a porrada dói do mesmo jeito”.

A proposta de abertura controlada não abria mão do autoritarismo, dos casuísmos e muito menos da repressão e violência contra os seus adversários. Ao contrário, implicava em “limpar a área”, eliminando fisicamente aqueles que, pelo prestígio eleitoral e popular, poderiam criar obstáculos aos limites programados. Nesse contexto, fica mais fácil entender os assassinatos de três grandes lideranças civis oposicionistas – Jango, Juscelino e Lacerda, no curto espaço de um ano. Em relação à oposição clandestina, após a vitória militar sobre a resistência armada,  tratava-se de eliminar o PCB, que mesmo sob duras condições de clandestinidade, promovia uma política de aliança com todos os setores que se opunham ao regime ditatorial. Entre 1974 e 1975, praticamente todas as direções e organizações estaduais do partido foram desmanteladas e sua direção nacional interna presa, inclusive com o assassinato de dez membros do Comitê Central. Em 1975, oficiais da Policia Militar, Herzog e Manoel Fiel Filho são torturados e mortos no DOI-Codi. Em 1976, ocorre nova onda de cassações de mandatos de deputados acusados de vinculações com o Partidão. Em dezembro do mesmo ano, dirigentes nacionais do PCdoB são trucidados no episódio que ficou conhecido como a chacina da Lapa. Além desses crimes cometidos durante o chamado processo de distensão, algumas limitações políticas devem ter sido previamente definidas. A promulgação da Anistia não poderia atender aqueles que os órgãos de repressão classificavam como “crimes de sangue”, isto é, resistência armada, que provocou mortes. A anistia deveria, ainda, atender os dois lados,  impedindo que  crimes de torturas e assassinatos pudessem ser apurados, e seus autores levados à barra dos tribunais. Ora, isso é uma falácia. Não há ação política e/ou armada dos combatentes contra a ditadura que não tenha sido completamente desvendada, seja pelo odioso trabalho de infiltração, seja pelas informações arrancadas sob tortura. Seus autores foram presos, torturados e muitos assassinados, não há o que descobrir ou apurar. Falta descobrir os restos mortais dos mortos e desaparecidos. Quais foram as condições e formas de suas mortes, e, principalmente, seus autores. Apenas agora, 35 anos após a promulgação da Anistia, com a institucionalização da Comissão da Verdade, essa importante questão vem ao debate nacional. Também é possível supor que a abertura lenta, gradual e segura impôs que o sucessor do presidente Geisel, Gal. Figueiredo, também seria levado ao cargo pela farsa da escolha indireta. É sintomático que o próprio Congresso Nacional, que rejeitou o clamor de milhões de brasileiros pelas eleições diretas, poucos meses depois, elegesse indiretamente para presidente o candidato formalmente oposicionista Tancredo Neves.

Dois importantes acontecimentos devem ser considerados e que talvez tenham fugido do rígido controle da ditadura. Em dezembro de 1978, ao final de seu governo, Geisel revogou o Ato Institucional nº 5, resolvendo para o seu sucessor Figueiredo um problema que talvez esse não tivesse a força suficiente para impor à “linha dura”. Até aquele instante, a palavra de ordem de revogação do ato discricionário era, sem dúvida, a bandeira que unia todos os setores oposicionistas, inclusive aqueles mais moderados. Simultaneamente, a anistia mesmo parcial e incompleta promulgada em 1979, fruto de legítima aspiração nacional, inspirada e comandada por mulheres brasileiras, abriu as portas dos cárceres para muitos e trouxe de volta do exílio figuras nacionais como Brizola, Arraes, Prestes e muitos outros.  As históricas greves dos trabalhadores do ABC, comandadas por Lula em 1978 e 1979, mostraram que a ditadura já não possuía condições de barrar o movimento operário e democrático apenas com repressão e violência. As eleições diretas para os governos estaduais em 1982, consagraram a vitória da oposição nos mais importantes estados da federação: São Paulo, Minas, Rio de Janeiro e Pernambuco. O processo de abertura passou a ter duplo comando negociado, a partir do planalto com Figueiredo e os governadores eleitos nesses Estados. Essa colaboração política explica o acerto feito no pleito indireto que elegeu Tancredo Neves.

Todo o processo da chamada distensão ocorreu também com acertos e contradições no interior do regime militar. Havia a luta pela coroa da presidência e a disputa pela forma de conduzir a política do regime militar. Apesar do governo Geisel ter derrotado seus opositores internos, destacando-se, no caso, os generais Ednardo D´Avila e Silvio Frota, foi necessário que o seu sucessor Figueiredo, ao repudiar os atentados terroristas cometidos por militares descontentes com a política de abertura, clamasse que as bombas eram dirigidas a ele e que estava disposto a prender e arrebentar seus adversários  internos.

A política tresloucada da “linha dura”, incrustada principalmente nos órgãos de segurança, consistia em tentar tumultuar o processo político por meio de atentados terroristas e simples bandidagem. É claro, que o governo Geisel como o de Figueiredo sabiam  quem explodia e queimava bancas de jornais, quem lançou uma bomba na OAB vitimando d. Lidia, quem cometeu a insana ação das bombas no Riocentro, no entanto, nada podiam fazer porque se tratava de companheiros de farda e comparsas de política e ações criminosas.

VI – Herzog: um crime premeditado

Durante a minha prisão, no que eles chamavam de centro clandestino da repressão e no DOI-Codi, pude perceber como usavam o assassinato de presos políticos para atingir objetivos na luta interna. Para governar o Estado de São Paulo, Geisel havia escolhido Paulo Egydio Martins, misto de político e empresário intimamente ligado ao presidente e ardoroso defensor da política de distensão. Apesar de não mover uma palha para barrar ou diminuir os crimes e desmandos da repressão, era profundamente odiado pelos órgãos de segurança, em particular pelos facínoras do DOI-Codi. Na sua administração conviviam o secretário de Cultura José Mindlin, com posições democratas, e o secretário de Segurança Erasmo Dias, típico representante da “linha dura”, uma vez que essa nomeação passava, obrigatoriamente, pelos órgãos de segurança.

Diversas vezes quando estava sendo seviciado o torturador gritava: “seu comunista de merda, você ainda vai ver aí sentado na cadeira do dragão o governador-gigolô, basta ele continuar enchendo o saco”.  O termo gigolô era usado porque o governador se casou com Lila Byington, filha de uma das famílias mais ricas de São Paulo. Em outro momento, fui levado à câmara de torturas e o interrogatório sob terrível espancamento me surpreendeu. Perguntavam continuadamente quando seria o meu  próximo “ponto” com José Mindlin. Tentavam violentamente relacionar o secretário de Estado com o PCB. Inclusive, argumentando que sabiam de tudo e  que José Mindlin era contribuinte da base dos judeus. Após quase uma noite inteira, e cansados da minha insistência de que não conhecia José Mindlin (e eu não o conhecia mesmo), desistiram e levaram-me quase aos pedaços para a cela. Compreendi que tentavam atingir o governador Paulo Egydio por meio de um de seus secretários.

Ao saber posteriormente da morte de Vladimir Herzog liguei os fatos. O jornalista ocupara, recentemente, o cargo de diretor de jornalismo da TV Cultura, da Fundação Anchieta, que era vinculada exatamente à Secretaria de Cultura ocupada por José Mindlin, coincidentemente,  também de origem judaica. Apesar do pouco tempo que Herzog foi diretor de Jornalismo da TV Cultura, sua nomeação provocou uma falsa celeuma alimentada por um jornalista direitista e oportunista, Claudio Marques. No seu sensacionalismo barato clamava que o jornalismo da TV estava infiltrado de comunistas e que a Secretaria de Cultura do governo do Estado era totalmente conivente com essa situação. Se essa campanha era encomendada pela repressão ou não, tem pouca importância, mas certamente foi extremamente útil para atender os objetivos sinistros do DOI-Codi. Vladimir Herzog poderia ser o instrumento para comprometer o secretário José Mindlin e, consequentemente, demonstrar que Paulo Egydio, adversário da “linha dura” e seguidor de Geisel, permitia que o principal Estado da Federação ficasse “infiltrado de comunistas”.

Diante da possível resistência do jornalista, decidiram assassiná-lo para criar um fato que atrapalharia o desenvolvimento da moderada política de distensão. Não creio que seja simples coincidência o fato de logo após o assassinato de Herzog o secretário Mindlin ter saído da Secretaria de Cultura. Mais uma vez, o governo Geisel absorveu o golpe e os interesses gerais da ditadura impediram a total elucidação dos fatos e a punição dos criminosos. Em janeiro de 1976, apesar do compromisso entre o presidente de que o Gal. Ednardo D´Avila continuaria no comando do II Exército e que  esses crimes não se repetiriam, o operário Manoel Fiel Filho, militante de base do PCB, foi assassinado, obrigando o presidente da República exonerar o comandante do Exército sob pena de desmoralizar-se diante de seus pares e do mundo político e social.

As opiniões que emiti nesse artigo buscam refletir os motivos de  tanta demora em iniciar a autópsia e os autores dos bárbaros crimes cometidos no período ditatorial. Sei que não há sentido na retaliação e nem no revanchismo, mas esses sentimentos não podem ser confundidos com a busca pela verdade que significa para o país olhar para trás sem vergonha e sem medo, valorizando a democracia e confiando cada vez mais no Brasil, como nação soberana e livre, que busca incessantemente a felicidade do seu povo.

Edwaldo Alves Silva, atualmente filiado ao PT


Uma Resposta para “50 anos do Golpe Militar: Em defesa da democracia, um relato sobre tempos difíceis”

  1. sonia raquel machado lopez

    nao vivi a ditadura mas suponho que tolir a liberdade deve ser terrivel, so que tem gente que gostaria que a ditadura voltasse e da forma como estamos cuidando da democracia isto pode se tornar uma realidade se a copa do mundo virar bagunça pode se tornar um divisor de aguas cuidado!!!

Os comentários estão fechados.