Com uma bandeira na mão

1-Newton

Dizem que do mundo todo nada ainda eu descobri, mas de que vale o mundo todo, se todo o meu mundo é aqui?

Chico Buarque

Por Newton Camargo

A Copa do Mundo de Futebol, organizada pela FIFA, e que vai ocorrer no Brasil a partir de 12 de junho de 2014 tem mobilizado corações e mentes por este país afora.

É tanta informação e desinformação veiculadas nos órgãos de comunicação e nas redes sociais, que todo cidadão pode tomar partido de opiniões que às vezes não têm nada a ver com a realidade dos fatos, sejam opiniões contra ou a favor do evento.

Portanto, esta reflexão vai fugir dos clichês largamente utilizados e tentar pensar por outras óticas a manifestação do “problema”.

O futebol compõe parte de nossa cultura há mais de cem anos. Primeiramente realizado como esporte de elite, foi ganhando aos poucos o gosto dos trabalhadores e dos setores oprimidos, passando a compor o lazer dos operários em seus períodos de folga. Consequentemente, foram formados “times” de ruas, bairros, fábricas e outras tantas maneiras de associativismo que comportassem essa possibilidade.

Daí, para a “profissionalização” do futebol, foi um pulo. Nas cidades grandes e médias do Brasil começaram a surgir times que disputavam ligas locais, regionais e estaduais.

Foi também momento de uma conformação identitária de coloração de classes e etnias. Surgiram assim times como o Internacional de Porto Alegre, o América do Rio, que tinham uma forte conotação de identidade com a classe trabalhadora. Corinthians, Palmeiras, Portuguesa que abrigavam identidades nacionais e Flamengo, Vasco e Fluminense que se “remoíam” nas escalações de negros em seus times. E afloraram muitos e muitos outros aspectos de nossa formação étnico cultural que tingiram toda a composição desse fenômeno de nossa genética.

Não será aqui que poderemos aprofundar outra questão também pertinente a reflexão: esse fenômeno não se deu exclusivamente no Brasil. Talvez aqui ele tenha ganhado proporções gigantescas, mas, com certeza, ele não é exclusividade de nossa História. Hoje, é o esporte mais praticado no mundo. De norte a sul, de leste a oeste do globo terrestre o futebol é realizado independente de local, nacionalidade, ideologia ou religião. Se há um esporte que é praticado “globalmente”, esse esporte é o futebol.

No caso do Brasil, a paixão é quase unânime. Desde criança, na mais pura inocência, ele é praticado de maneira apaixonada. A bola e o uniforme são presentes constantes em datas festivas de crianças. E quando uma criança ganha uma bola imediatamente esquece do mundo, dos familiares e parte para a brincadeira  prontamente. Aquele que tinha a “bola de capotão” na rua era o dono da galerinha, (quem teve infância sabe do que estou falando).

Na “minha época” era um “esporte de meninos” e, com o tempo, o futebol também foi uma ótima ferramenta para ajudar a acabar com o estigma do machismo em nossa sociedade. Hoje, até seleção feminina de alto padrão nós temos. Inclusive, “craques”, como Marta, ganham destaque e reconhecimento internacional.

É com o futebol que também muitos voluntários anônimos ajudam a sociedade a tirar crianças das influências dos círculos de drogas e de outras mazelas sociais, ao criar uma sociabilidade possível de progredir a uma cidadania inclusiva.

Nossos “babas”, “peladas” e jogos de finais de semana compõem um calendário quase que exclusivo, no cotidiano das relações familiares. Chegou o dia da semana e pronto: corra, pegue sua chuteira, que só tá faltando um prá começar. E depois aquela resenha onde todos se transformam em excelentes treinadores e pitaqueiros. Tudo regado a uma cervejinha e ao atraso do compromisso com a esposa.

Transformar isso em uma doença é daqui para ali. Fanatismo no futebol se iguala ou supera, ao religioso.

O futebol é para nós mais que a pecha de alienação que os ditadores de ocasião quiseram infundir em nossa mentalidade, ao trocar a repressão por pão e circo, transformando uma conquista nacional em uma vendeta aos trabalhadores organizados do Brasil.

Mas em contraposição ao escárnio tivemos nossos Afonsinho e Sócrates, entre outros que ajudaram, por meio do futebol, na construção de uma nova pedagogia de luta contra a ditadura e pelo estabelecimento de uma democracia em nosso país.

Talvez seja por essas razões que a copa no Brasil tenha se transformado num palco de disputa política acirrada. Os ingredientes estão aí. É só agitar que pode explodir, em emoção, amor, raiva, ódio ou em o que quer que seja. Depende apenas da manipulação, seja de direita ou de esquerda.

Mas o que tem me chamado a atenção nas manifestações contra a copa é uma concepção difusa de luta.

Quais são as questões centrais dessas mobilizações? De forma genérica, o que pretendem os manifestantes? Que esquerda é protagonista de uma bandeira como essa? Ou que direita pode estar usando isso para suas pretensões?

No regime do império das dúvidas, exponho as minhas para que possamos contribuir com algo que seja progressista nas mobilizações populares.

1 – Longe de fazer propaganda de governo, devemos perguntar: saúde, educação, moradia? Muito bem. Estamos distantes quatro anos da copa passada e só agora isso tudo piorou? Ou ficou muito pior depois do anúncio que a copa seria realizada no Brasil? O governo está desviando dinheiro da educação, saúde habitação… para construir e reformar os estádios sedes da copa? Onde estão os dados, números e ações que consolidam essas afirmações? Onde estão outros poderes da República? Estariam todos eles “conluiados” para “roubar” a nação?

2 – Há uma grita também que o Brasil vai parar no período da copa. Pois bem: Em outras edições da copa do mundo foi diferente com relação a isso? O Brasil não “parou” para torcer por sua seleção naquelas oportunidades? Ou só porque é aqui que vai parar? Quem não se lembra daquela copa realizada no Japão/ Coréia? Todos iam para suas casas dormir sem assistir aos jogos porque ocorriam pelas madrugadas?

3 – Considerando que a vanguarda dos movimentos seja de esquerda: Que esquerda é essa? Será que os programas e as bandeiras se reduziram a esse patamar? Onde estão os trabalhadores do campo e das cidades? E que estratégia revolucionária é essa que quer mobilizar o povo justamente na hora da copa? Estão convencidos de que os oprimidos da nação irão desligar suas TVs, na hora dos jogos, para engrossar as fileiras da “luta revolucionária”? Onde está o projeto socialista de sociedade? Está guardado e ninguém pode ver por enquanto, para depois de tomar o poder apresentá-lo aos trabalhadores?

4 – Considerando que sejam movimentos liderados pela direita: Por que, nos estados onde os governadores são de oposição e vai ocorrer a copa do mundo, estes não se antepuseram e proibiram a sua realização? Por que de um lado os meios de comunicação criticam as ditas mazelas, mas não abrem mão da cobertura do evento? Por que fazem matérias sobre estádios, aeroportos, mobilidade urbana, como se o mundo tivesse acabando, e, ao mesmo tempo, glorificam as personagens do evento? Por que intuem desvios e prosseguem destacando a Nike, Coca-Cola, Vivo, Oi e tantas outras “belezas” do capital?

5 – Sobre a legitimidade das mobilizações: As mobilizações populares estão proibidas no Brasil? Os direitos civis, reuniões, manifestações e outras liberdades (conquistadas na luta no passado próximo) estão suspensos no país? Então, por que cobrir o rosto?

As gerações herdeiras e tributárias do socialismo, em suas várias modalidades, do passado, tinham outros encantamentos e motivações nas suas lutas e abnegações. Não quero dizer com isso que eram melhores, mas sem dúvida, deixavam bem claras suas intenções, suas bandeiras e suas organizações. Não usavam máscaras, pois não precisavam. Acreditavam que seus propósitos eram justos e verdadeiros, e assim diziam: a razão da História está conosco.

Luiz Carlos Prestes, Carlos Marighela, Leonel Brizola, e tantos outros, na maioria anônimos, de uma geração que lutou no passado e não mediu esforços para construir um país mais fraterno e solidário, não merecem que suas expectativas transformadoras sejam reduzidas a isso.

Nós somos seres humanos, movidos por paixões. E a paixão é o elemento combustível de nossas vidas. E quanto maiores forem elas, mais felizes seremos. O esporte deve ser um momento de confraternização entre pessoas e povos. Isso é político, isso é humano. Se nós que pensamos em liberdade como ato final de nossa luta, então devemos pensar nisso como um elemento agregador, que some para as conquistas dos oprimidos.

Assim como nosso país é apaixonado por futebol, também pode, e deve, se apaixonar pela política. E deve ser essa a meta de formadores de opinião. Uma não pode ser o amor e outra o ódio. Trabalho, luta, lazer e cultura não são excludentes. São parte constitutivas da nossa passagem por aqui. Usar uma paixão nacional para fazer uma disputa simplória da opinião pública é deplorável.

Nossas bandeiras e sonhos devem se consubstanciar nos desejos populares. Assim, poderemos construir uma nação justa, solidária e fraterna.

Sou a favor da copa.

Newton Camargo, professor da UESB – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia.


Os comentários estão fechados.