O cerco dos fuzis na terra do frio

Jeremias MacárioJeremias Macário

Naquela manhã frienta de seis de maio de 1964 os conquistenses acordavam com um pressentimento diferente em seus corações. A neblina deslizava como fumaça da Serra do Periperi e invadia as principais ruas e periferias da cidade.

Esparramava seus fios finos no horizonte entre o Parque de Exposições; na final da avenida Getúlio Vargas, em direção a Barra do Choça; lá no ponto do “Gancho” da zona sul, que dava para Itambé; e abraçava o outro lado oeste na “Boca do Sertão” que leva a Anagé e Brumado.

As esposas e mães, como de hábito levantavam cedo para cuidar de seus maridos e filhos com o café-da-manhã. As empregadas já estavam no fogão com o pão quente trazido da padaria. Era mais um dia de labuta e de levar as crianças às escolas.

Intuitivas e sensíveis, ao se levantarem de suas camas, sentiram um aperto angustiante em seus corações como se algo estivesse por acontecer. A cidade acordava ainda com o canto dos pássaros, e a vida começava a dar seus primeiros passos nas ruas e avenidas. Cada um tomava seu rumo cotidiano, uns lentos, despreocupados, e outros apressados e tensos.

As portas e janelas se abriam para mais um dia de trabalho no comércio, lojas e nos escritórios. Vindos de outras terras, os vendedores mascates representantes de empresas carregavam suas pastas, e os ambulantes anunciavam suas mercadorias e novidades.

Vitória da Conquista, com seus 50 mil habitantes na zona urbana e mais de 30 mil na zona rural, começava a se agigantar a partir da BR-116 (Rio-Bahia), inaugurada em 1963, pelo presidente da República, João Goulart, na divisa entre Bahia (Cândido Sales) e Minas Gerais.

No Centro, a Barão do Rio Branco e o Jardim das Borboletas (avenida Tancredo Neves) – antiga rua Grande – eram os destaques (ainda o são até hoje). Em suas transversais o Beco Chico Piloto, hoje Alameda Ramiro Santos; o Beco de Seu Costa, ou Beco da Tesoura (Lima Guerra); o “Beco Sujo, ou Ernesto Dantas atual; “Rua da Moranga que virou Siqueira Campos; a Rua das Sete Casas que se transformou no Fórum João Mangabeira; Rua do Cobertor, ou Laudicéia Gusmão; Rua dos Tocos, hoje 10 de Novembro; Rua da Vargem, ou Rua 2 de Julho; Rua das Flores, ou Góes Calmon e ainda a Estrada da Boiada que passou a ser João Pessoa.

Todas estas denominações estão registradas no livro do saudoso Mozart Tanajura, em “História da Conquista” (página 73/74). A zona oeste não ia muito além do Bairro Brasil com a avenida Barreiras. A maior referência era a Companhia da Polícia Militar (9º Batalhão) ainda em processo de construção. A praça José de Sá Nunes já abrigava o Clube Social.

A praça Barão do Rio Branco, palco do cerco da ditadura militar com seus 100 homens armados de fuzis e metralhadoras naquele dia seis de maio (aqui chegaram com suas tropas no dia cinco de maio, pela manhã), já se portava como centro financeiro e ponto de encontros.

Dalí se sabia das fofocas do dia através das conversas e dos papos entre amigos e conhecidos como acontece ainda hoje. Do chamado “Senadinho” saiam e saem todas as notícias, se bem que naquela época com muita cautela por causa da censura e da repressão. O país vivia em convulsão e as prisões se sucediam.

As informações e os comentários sobre o golpe civil-militar de 1º de abril, ou 31 de março de 1964, como preferem certos historiadores e estudiosos no assunto, ainda estavam no forno, mas o medo já rondava mentes e pensamentos. A liberdade não era mais tolerada. Até o cochicho de “pé-de-ouvido” era temerário.

Os professores, estudantes, operários, jovens e intelectuais comprometidos com os movimentos sociais e ligados às reformas de base propostas pelo governo Goulart, iniciadas a partir de 1962, sentiam o calafrio do terror e o cerco dos fuzis.

O professor Ubirajara Brito, em depoimento no documentário “RBTV Produções”, de Ricardinho De Benedictis, sobre a vida e a história do ex-prefeito José Fernandes Pedral Sampaio, disse que o golpe civil-militar foi fatal para Vitória da Conquista e que castrou toda uma geração.

QUEIMA DE DOCUMENTOS

Os movimentos e as organizações dos estudantes de Vitória da Conquista em defesa da legalidade e das reformas de base pela justiça social eram vistos como os mais vibrantes do estado, respeitados inclusive em Salvador. Em 1961, nos tempos mais conturbados das ameaças de golpes, era criada a União Conquistense dos Estudantes Secundaristas que tinha ligações com o PCB e representava cerca de 10 mil estudantes.

Quando a tropa do Exército, sob o comando do capitão Antônio Bendochi Alves Filho, chegou no dia cinco de maio, os líderes se reuniram na Escola Normal e resolveram queimar todos os documentos da agremiação, como atas, relatórios, correspondências do Partido Comunistas e exemplares do jornal da categoria “O Labor” que comprometessem a segurança dos colegas e de outras pessoas. Foi feita uma limpeza geral em todos os arquivos que contavam a história de suas entidades.

Com medo da repressão, muitos procuraram se esconder em casas de amigos e parentes nas redondezas até que a tempestade de acalmasse. Um dos líderes mais visados, o estudante Osvaldo Ribeiro, da Escola Normal, queimou todos seus livros marxistas e socialistas, até um broche que ganhara da embaixada da Rússia. Entre o dia cinco e seis fugiu para Itapetinga e de lá para uma fazenda em Minas Gerais. Mais tarde foi morar em Belo Horizonte, só retornando à cidade quatro anos depois.

Ele que em 2012 já contava com 70 anos, lembra que o desespero tomou conta de muita gente que militava nos movimentos (Grupo dos Onze, ALN, Juventude Católica) e apoiava o grupo de Pedral Sampaio.

Com 22 anos, Osvaldo Ribeiro era um jovem cheio de ideais de mudanças e viu a democracia ser bruscamente interrompida. Estudante da Escola Normal, conduziu o grêmio por três mandatos, organizando passeatas e fazendo parte das decisões políticas da cidade.

Como membro do grêmio estudantil de seu colégio, foi também um dos fundadores da União Secundarista dos Estudantes e do Grupo Libertadores Estudantis junto com Goal Gusmão, Durval Menezes, Djalma e outros companheiros de luta. Só a Escola Normal abrigava naquela época três mil estudantes, mas a União representava outros colégios como o Ginásio Padre Palmeira e até as Sacramentinas.

Vivia-se, segundo seu Osvaldo, que terminou se formando em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia, numa verdadeira ebulição cultural e política através da realização de atividades que sacudiam a comunidade. Por tudo isso, de acordo com ele, Conquista era a cidade mais visada do interior quando o golpe militar estourou.

Depois de ter ficado muito tempo foragido, o jovem Ribeiro retornou para sua terra natal e depois seguiu para Salvador one continuou seus estudos. Certamente esqueceram-se dele, mas não deixou de participar dos movimentos contra a repressão e pela liberdade.

OS COTURNOS DA DITADURA 

Os soldados armados chegaram no dia cinco de maio e logo no outro dia, de fuzis e metralhadoras, já estavam agoniados para efetuar as prisões dos

“subversivos comunistas”. Queriam ação e mostrar serviço. A cidade intimidada e humilhada estava sob os pés daqueles coturnos pesados do Exército.

Como numa guerra bruta e estúpida, todo terreno estava ocupado pela força das armas. Um ônibus de uma empresa particular, carros do DNER, jipes e caçambas do Exército estacionaram na praça Barão do Rio Branco para fazer o catado dos detidos pelos arredores, em escritórios, oficinas e residências. Pegos de surpresa, dalí os presos foram levados para a Companhia da Polícia Militar (9º Batalhão) para responderem o IPM-Inquérito Policial Militar, sob a supervisão do capitão Antônio Bendochi Alves Filho.

Existe uma polêmica em torno de um ônibus particular que recolhia os presos, mas a maioria das testemunhas e detidos confirma o uso desse tipo de veículo pelo comando da tropa. No entanto, o soldado aposentado, Jailson Lacerda, que já estava em Conquista em 1964 nega a existência do ônibus e cita que o Exército estava com três jipes e quatro caçambas (caminhões de carrocerias). O certo é que também foi utilizado um ônibus. A informação foi de que pontos estratégicos foram tomados, como, por exemplo, o aeroporto para que não houvesse fugas.

Nos primeiros dias o terror da ditadura prendeu Alcides Araújo Barbosa (presidente do Sindicato dos Comerciários), Altino Pereira (presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil), Aníbal Lopes Viana (jornalista e suplente de vereador), Edvaldo Silva (presidente da Associação dos Panificadores), Érico Gonçalves Aguiar (agricultor), Franklin Ferraz Neto (juiz trabalhista), Galdino Lourenço (motorista), Gilson Moura e Silva (radialista e membro do sindicato da categoria), Hemetério Alves Pereira (dono de livraria), Hugo de Castro Lima (médico), Ivo Vilaça Freire de Aguiar (funcionário público), Jackson Fonseca (rádiotécnico), João Idelfonso Filho (publicitário), José Luiz Santa Isabel (bancário), José Fernandes Pedral Sampaio (engenheiro civil e prefeito), Juracy Lourenço Neto (comerciário), Lúcio Flávio Viana Lima (bancário), Luis Carlos (bancário), Paulo Demócrito Caíres (estudante e presidente do Grêmio), Péricles Gusmão Regis (representante comercial e vereador), Raimundo Pinto (comerciante), Raul Carlos Andrade Ferraz (advogado e suplente de vereador), Reginaldo Carvalho Santos (bancário e diretor do jornal “O Combate”), Vicente Quadros Silva Filho (rádiotécnico), Alender Santos, entre outros.

Ruy Medeiros descreve que o clima na cidade ficou tenso com o cerco da tropa de 100 homens do capitão Bendochi, que logo começaram a efetuar as prisões. Reinava um clima de raiva por parte daqueles que estavam sendo perseguidos; medo e desespero da população em geral; e deletar solidariedade para ajudar com recursos financeiros as famílias dos presos que ficaram sem seus chefes. Houve até lista de colaboração para manter as famílias das vítimas.

Dona Maria Angélica Rosa e Silva, neta do coronel Gugé, com 94 anos em 2012, quando nos concedeu esta entrevista, foi testemunho ocular de toda movimentação da tropa na praça 15 de Novembro, hoje “Barão do Rio Branco”, e se lembra de que o Exército colocou um ônibus para levar os presos. O alvoroço foi tão grande na cidade que as aulas foram suspensas. Ela recorda muito bem disso porque na época era professora e não foi à escola.

Antes das prisões no dia seis de maio, a praça, segundo dona Maria Angélica foi palco também de um grande comício pela reforma agrária que gerou uma reunião no Cine Conquista em protesto dos fazendeiros contra a medida de Jango. Apesar de serem parentes de Pedral Sampaio, ela e sua família não eram da mesma corrente política do prefeito. Depois do golpe, dona Angélica disse que seu pessoal, temendo represálias, não mais tomou partido na política.

Dias depois foram ainda presos o professor Everardo Públio de Castro, Anfilófio Pedral Sampaio (funcionário público e suplente de vereador), Camilo de Jesus Lima (escritor-jornalista e oficial do Registro de Imóveis que foi preso em Macarani e transportado para Conquista), Flávio Viana de Jesus (marceneiro e diretor do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil, que não suportou as pressões e se entregou), Atenor Rodrigues Lima, o “Badu” (comerciário) e Cláudio Fonseca (estudante, menor de quatorze anos e meio de idade).

Como se não bastasse, o Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil foi logo fechado e toda população ficou aterrorizada. Os boatos eram os mais diversos sobre prisões e arbitrariedades praticadas pelos homens do Exército. Os ânimos ficaram mais acirrados entre os grupos políticos da situação e da oposição. Os delatores eram alvos de ódio.

No mesmo dia seis de maio, à noite, sob a mira de metralhadoras e por imposição e ordem do capitão Bendochi, a Câmara de Vereadores foi obrigada a se reunir e cassar o mandato do prefeito Pedral Sampaio.

De acordo com Pedral e seu irmão Anfilófio, até a ata de cassação foi ditada pelo comando militar. Na mesma hora, o vereador Orlando Leite foi empossado no cargo de prefeito (formalmente eleito pela Câmara em junho). O cerco se fechava cada vez mais. A direita divulgava boatos. Alguns jornais, como “O Sertanejo”, elogiavam os ditadores de plantão na cidade.

BENDOCHI: “MISSÃO SECRETA” 

Tentamos entrar em contato com o capitão Antônio Bendochi Alves Filho, então comandante das operações, em Vitória da Conquista, das prisões de maio de 1964. Encontrar seu telefone foi muito difícil, pois as informações preliminares davam conta de que ele estava morando em Salvador e ninguém tinha seu contato. Suas declarações eram muito importantes para o nosso trabalho de pesquisa.

Depois de vários conversas com fontes em Conquista e em Salvador, descobrimos que o capitão havia sido promovido, há muito tempo, a general (aposentado) e estava residindo em Aracaju (Sergipe). Uma informação segura nos passou seu telefone verdadeiro. Na primeira vez que ligamos disse que se tratava de seu irmão, e que o comandante das prisões em Conquista morava em Salvador. O homem estava “fugindo” de qualquer depoimento. Insistimos outra vez e confirmamos que estávamos na pista certa da investigação.

O capitão (general) pediu um tempo para responder ao nosso convite de conceder uma entrevista para elucidar diversos pontos do episódio da ditadura na cidade, inclusive sobre a morte de Péricles Gusmão, no dia 12 de maio, em sua cela na Companhia da Polícia Militar.

Após consultar o seu comando (4ª Região Militar, sediada em Salvador), Bendochi afirmou que não podia falar no assunto porque, naquela época, estava em missão sigilosa, ou “secreta”. Como se vê, depois de 49 anos, a cúpula militar ainda considera que os fatos são sigilosos e não podem ser revelados, pois na sua concepção tratam-se de questão de segurança nacional.

Como estas e outras, são inúmeras as dúvidas que precisam ser esclarecidas sobre a ditadura, para que o povo conheça sua verdadeira história. Aí é onde entra o papel da Comissão da Verdade, que é de estudar e pesquisar as raízes dos fatos para que a história seja contada como ela foi.

DETIDO NO CAMINHO DA PREFEITURA

Para mais uma lida, como de costume, o prefeito Pedral Sampaio, nascido em 1925 na Rua Grande (Tancredo Neves), saiu naquela manhã do dia seis de maio de 1964 da sua residência, localizada na parte alta da praça Sá Nunes (centro) e desceu rumo à Prefeitura Municipal para despachar. Em frente do Clube Social deparou-se com um grupo de homens armados do Exército que haviam invadido Conquista no dia anterior (cinco de maio).

Pedral parou no veículo da prefeitura e se dirigiu a uns oficiais para se apresentar como governante do município. Sua intenção era colocar o poder executivo à disposição dos militares no que precisasse. Não imaginava o que viria depois.

– Bom dia, eu sou o prefeito e estou sabendo que os senhores chegaram ontem à cidade em missão. Se necessitarem da prefeitura para alguma coisa é só nos procurar. Ia mesmo fazer uma visita ao comando na Companhia.

Aí um soldado, ou oficial avançou e indagou se era ele mesmo o prefeito Pedral Sampaio. Tudo indica que já estavam na tocaia, esperando sua passagem.
José Pedral Sampaio.
– Sou sim – respondeu Pedral.
– Então, vamos ao comando. É com o senhor mesmo que estamos querendo conversar.
– Por obséquio queira entrar em nosso carro para irmos até à Companhia Militar da Bahia (hoje 9º Batalhão) – “convidou” um deles.
Quando Pedral entrou na caminhonete, dois tenentes já estavam lá e anunciaram que ele estava detido para averiguações.
Até aquele momento, o prefeito não esperava que fosse detido. Estava indo para suas atividades resolver problemas da população que eram muitos, numa cidade carente e castigada pela seca.
Na época, o maior problema da cidade era falta de energia elétrica. Estava completando um ano de mandato (tomou posse no dia sete de abril de 1963) e tinha muito ainda por fazer no restante da sua gestão. Muitos planos pela frente. As primeiras mudanças começavam a engrenar a máquina.
No caminho para a Companhia, imaginava ser apenas uma conversa informal e depois seria liberado para retornar aos seus afazeres na prefeitura. Mas, também em sua cabeça passava a possibilidade de ser preso.
No entanto, a ficha só caiu mesmo depois que entrou no gabinete do capitão Antônio Bendochi e ouviu oficialmente do comando de que ele estava preso para interrogatório.
Um homem público e honesto sai da sua casa pela manhã para trabalhar e no meio do caminho é interceptado e preso. Parece que falta chão; o emocional se abala; e todo seu quadro psicológico é afetado. O cerco dava seus primeiros sinais de violência tirando do povo seu governante eleito legitimamente.
Aquele dia seis de maio ficou marcado na história de Vitória Conquista, cujo prefeito teve seu mandato cassado pela mira dos fuzis e das metralhadoras. Foi também o dia da caça aos “subversivos comunistas” e daqueles que tinham participação mais ativa nas reuniões do núcleo da FNL-Frente Nacional de Libertação, movimento ligado ao PCB. Os mais visados já imaginavam o que ia acontecer.
Nas primeiras ações, a população entrou em desespero e ficou aterrorizada. Não era para menos, numa cidade ainda pequena, presenciar a invasão de 100 homens do Exército prendendo cidadãos de bem era chocante. Muitas lágrimas de esposas, filhos, mães e parentes. Os soldados, logo que chegaram se posicionaram com fuzis e metralhadoras na praça Barão do Rio Branco.
Carros de particulares e do DNER foram requisitados, inclusive um ônibus que ficou parado na praça para receber os presos. Esse maldito ônibus ficou marcado na mente das pessoas até hoje, embora tenha gente que afirme que em seu lugar eram caçambas do Exército, aqueles caminhões de carroceria coberta. No entanto, prevaleceu a versão do ônibus de uma empresa particular.
Era dia de trabalho e as pessoas iam se concentrando nas imediações da praça, assustadas com tanto movimento. Os soldados, de armas nas mãos, iam efetuando as ordens de prisão e recolhendo os detidos ao famigerado ônibus.
Calcula-se que entre 20 a 30 foram presos nesse dia e encaminhados para a Companhia da Polícia Militar da Bahia onde ainda é hoje o 9º Batalhão. Durante o mês de maio outras detenções foram sendo realizadas, estimando que cerca de 100 pessoas, tidas como perigosas ao novo regime tenham caído nas garras do capitão Bendochi.
Teve gente que foi arrancada de seus escritórios e lares. Outras presas nas ruas e alguns procuraram fugir, temendo o pior. Foi o caso do marceneiro Flávio Viana que correu para Bom Jesus da Lapa onde passou um tempo e depois retornou. Já o destemido Péricles Gusmão Régis, sabendo que estava sendo procurado, pegou seu carro (um Jipe) e foi até à Companhia se entregar.
A personalidade maior do município, Pedral Sampaio, se juntou a outros na relação de Bendochi, como Raul Ferraz, Hemetério, Everardo Público de Casto, Gilson Moura, Franklin Ferraz, Hugo de Castro Lima, Vicente Quadros, Paulo Demócrito, Atenor Rodrigues Lima, o “Badu”, Gildásio Caíres, João Idelfonso, Aníbal Lopes Viana, Anfilófio Sampaio e tantos outros que serão mais na frente nominados.
No início da operação, o comando fez uma seletiva, de acordo com suas fichas. Os considerados menos ofensivos ao regime foram logo soltos, mas os tidos “perigosos” ficaram. Dias depois foram transportados para Salvador, como foi o caso de Pedral Sampaio, Raul, Emetério, Everardo, “Badu”, Franklin e outros, entre 10 a 13 prisioneiros.
Na Companhia Militar, ainda em construção, o prefeito ficou incomunicável por dois dias numa cadeia com uma latrina. Ele e os outros dormiam no chão. Nos primeiros contatos com o comando não houve violência física, mas psicológica e intimadora, principalmente do capitão Bendochi que sempre provocava com palavrões e ofensas. “Procurei não fazer discursos e só respondia o que me perguntava, como se pertencia ao PCB, ou se apoiava o governo Goulart” – disse Pedral Sampaio.

“ÔNIBUS DA MORTE” 

No seu livro “Galeria F, Lembranças do Mar Cinzento”, o jornalista, professor e escritor Emiliano José abre um capítulo com o título “Ônibus da Morte” para falar do episódio do cerco dos militares em Vitória da Conquista nos dias cinco e seis de maio.
O autor destaca que toda repressão começou com um ônibus estacionado na praça Barão do Rio Branco que podia ser chamado de “Ônibus da Morte”, ou do terror, gerenciado pelo capitão Antônio Bendochi.
As pessoas delatadas eram conduzidas até o ônibus e depois para a Companhia da Polícia Militar. Derrotados, os Gusmão, do grupo Gerson Sales, começaram cedo a vingança contra Pedral. Na Câmara, Emiliano José aponta Gil Moreira e Orlando Leite como destaques dessa vingança. Orlando terminou prefeito, imposto pelos militares. Para o grupo da oposição a Pedral, como disse Ruy Medeiros, era chegada a hora da vingança.
Gerson Gusmão Sales foi prefeito no início dos anos 50. Fez seu sucessor Edvaldo Flores e retornou em 1958 derrotando Pedral. Em 1962, pelo PSD, Pedral ganhou de Jesus Gomes dos Santos (candidato de Gerson). A vitória de Pedral, como assinala Emiliano no seu trabalho, significou um passo adiante das forças progressistas, intensificando os debates em torno das reformas de base, especialmente da reforma agrária.
Toda Conquista naquela época se agitava, tanto que houve uma reunião de fazendeiros no Cine Conquista para bradar contra João Goulart e os comunistas. O orador principal foi Íris Silveira. O golpe acirrou mais ainda os ânimos, principalmente com o retorno do jornal “O Sertanejo” que estava com sua circulação parada. Os vereadores de direita disseminavam e plantavam a idéia do afastamento de Pedral.
Para defender a repressão aos seguidores do prefeito e à esquerda, Ruy Medeiros, em seu depoimento ao autor do livro “Lembranças do Mar Cinzento”, lembra de expressões da direita, que defendia ser necessário incorporar Conquista aos fatos nacionais recentes. O grupo queria deixar claro que o golpe devia agir mais intensamente em Conquista.
Emiliano fala de uma proposição aprovada pela Câmara e forçada pelos vereadores pró-ditadura, convidando a 6ª Região Militar para visitar o município, com a finalidade de apurar fatos, sem especificá-los. Resultou daí a vinda da tropa de Bendochi.
Porém, pesquisando as atas da Câmara daquela época não me deparei com esta proposição oficial, a não ser falas de vereadores da oposição fazendo duras críticas às reformas de base, com denúncias contra ações consideradas violentas e subversivas perpetradas pelos seguidores de Pedral. O clima tenso provocava as forças armadas a entrarem em Conquista, com seus atos de repressão.
Conquista contava com uma organização de esquerda e sofreu naquele momento um forte golpe com o fechamento de sindicatos e do jornal “O Combate”. Pedral não era membro do PCB, mas simpatizante e colaborador. Na eleição de 1962 aconteceu uma coalisão ampla, inclusive de ex-integralistas, tendo à frente o PSD, contra a UDN.
Na cidade, os mais engajados ao “Partidão” eram Flávio Viana de Jesus, da construção civil, Hemetério Pereira, correspondente do jornal “Novos Rumos”, Franklin Ferraz Neto, João Idelfonso e Everardo Públio de Castro, conforme cita o livro “Lembranças do Mar Cinzento”. A repressão procurou, então, desarticular o PCB e abrir caminhos para o grupo de oposição. Everardo de Castro foi o único condenado.
Na Companhia Militar, o ex-combatente da Segunda Guerra Mundial, Sebastião Rodrigues Leite tinha livre acesso aos presos e se comunicava bem com o médico Hugo de Castro Lima. Sebastião lembra que os presos liberados não podiam sair da cidade, a não ser com a ordem de Bendochi.
Certa vez, Hugo de Castro Lima precisou ir até Jaguaquara para acompanhar a liberação do corpo de seu neto “Huguinho” que fora assassinado. Aí foi até o ex-combatente para intermediar sua saída com o comandante. Seu pedido foi atendido e Hugo pode fazer sua viagem.
Quando ainda estava na prisão, Hugo disse a Sebastião que estava precisando da sua maleta de médico e pediu para pegá-la em sua casa. O capitão Bendochi não só permitiu como nem abriu a pasta quando Sebastião entrou com ela.
Sobre Anfilófio, irmão de Pedral Sampaio, ele conta o episódio do interrogatório. Com uma relação de documentos em seu poder, referentes aos movimentos sociais, o capitão quis saber se Anfilófio havia assinado tais papéis de adesão. Todos que o comandante ia citando, Anfilófio confirmava que sim.
Num determinado momento, o capitão parou e sisudo lhe indagou:
– Então o senhor assina todos os documentos de adesão que lhe pedem?
– Assino todos, desde que não tenha nada para pagar.
Sebastião Leite conta ainda a versão de que Anfilófio foi até à Companhia Militar e se entregou. Sobre a morte de Péricles Gusmão, acredita que tenha sido suicídio.A versão de suicídio está até hoje entalada na garganta de seus filhos e de muita gente que não acredita nessa história, montada pelos militares.
O preso político Péricles Gusmão Regis apareceu morto em sua cela no dia 12 de maio.

OS FUZIS DA 30ª SESSÃO

Vamos entrar agora no túnel da história das sessões da Câmara de Vereadores de Vitória da Conquista desde meados de 63 para compreender melhor a evolução dos fatos que culminaram com a fatídica 30ª Sessão, de seis de maio de 1964, que cassou o mandato de Pedral Sampaio e do povo que o elegeu.
A histórica sessão foi realizada sob a mira dos fuzis do capitão Antônio Bendochi Alves Filho, e os vereadores foram intimados a comparecer ao ato e acompanhar a ordem do regime militar daquela época. Vamos falar ainda sobre o fato mais na frente.
Logo depois do golpe civil-militar, a ação de caça aos comunistas golpeou Vitória da Conquista fazendo uma devassa através dos IPMs (Inquéritos Policiais Militares) como ocorreu em várias partes do Brasil, a exemplo da Zona Norte do Paraná, também no mês de maio, conforme apontam as pesquisas do livro “Brasil Nunca Mais” (BNM). A repressão atingiu, de imediato, o executivo e a Câmara Municipal, enquadrando também lideranças sindicais, estudantis e políticas.
Fora das organizações armadas de esquerda que só apareceram a partir de 1966, e em maior quantidade em 1968, o alinhamento com o governo deposto, ligações com Leonel Brizola, participação no “Grupo dos Onze”, solidariedade a Cuba e críticas às autoridades se encaixavam nos principais motivos das prisões feitas em Conquista.
Os militares geralmente enquadravam os detentos como comunistas ou pertencentes a partidos comunistas. O estudo do BNM identificou nos processos da ocasião três grupos distintos dos IPMs com base legal na Lei 1.802 de 1953. Apontavam como justificativas para as prisões as atividades de apoio ou de participação no governo de João Goulart, realização de propaganda subversiva e críticas às autoridades.
Como em outras partes do país, existia em Conquista um ar de vingança, sem direito a opiniões. Pessoas que tinham funções no governo anterior, idéias socialistas, afinidades com as reformas de base e com João Goulart viraram réus e suspeitos.
Aqui, como no Governo de Pernambuco (Miguel Arraes), por exemplo, foi montado o IPM da Subversão de Conquista, ou do Governo de Pedral Sampaio. Os cidadãos foram denunciados por delatores como comunistas, simpatizantes ou aliados. Como concluiu a pesquisa do BNM, tudo girava em torno de um
Partido Comunista criado na imaginação dos militares.
Dito isso, convido o leitor a acompanhar os acontecimentos políticos das sessões da Câmara e outros fatos a partir de 1963 até 64/65, os anos mais agitados em Conquista.

IMPEDIMENTO NA FORÇA 

A histórica 30ª Sessão, à noite do dia seis de maio de 1964, foi convocada pelo comandante Antônio Bendochi Alves Filho para aprovar, sob a mira dos fuzis e metralhadoras, o impedimento do prefeito Pedral Sampaio que já se encontrava preso na Companhia da Polícia Militar da Bahia (9º Batalhão). O chefe da tropa tinha pressa e Conquista estava amordaçada e cercada pelas armas.
Os vereadores aliados do prefeito também estavam presos e foram substituídos imediatamente por suplentes. Tudo era ilegal, inconstitucional e brutal, mas o povo já vivia em estado de exceção. Por todo tempo, a sala da Câmara, no Fórum João Mangabeira, (funcionava no antigo prédio da Câmara) e a entrada externa ficaram cercadas por soldados armados de fuzis e metralhadoras.
Compareceram à sessão os vereadores Orlando Leite (presidente), Altamirando Novais, Nelson Gusmão Cunha, Vivaldo Mendes Ferraz, Marcelino Mendes Cunha, Floriano Alves Barreto, José Gil Moreira, Alziro Dias de Oliveira, Flávio Santos, Olavo Ramos de Oliveira e Misael Marcílio dos Santos.
A finalidade principal da reunião foi “apreciar” o impedimento do prefeito José Fernandes Pedral Sampaio, no parecer do novo regime, pelo fato de “professar ideologia contrária à verdadeira democracia que herdamos dos nossos antepassados e à verdadeira forma de governar compatível com nossos ideais de liberdade”.
O primeiro secretário da Mesa Diretora leu o Projeto de Resolução 62/64, declarando o engenheiro Pedral Sampaio impedido para desempenhar sua função. O Artigo número 1 da dita Resolução dizia que o prefeito fica declarado impedido para desempenhar as funções. No Artigo 2, a Resolução entra em vigor na data de sua aprovação.
O termo do impedimento foi assinado por Olavo Ramos de Oliveira, Nelson Gusmão, Vivaldo Mendes, Misael dos Santos, Floriano Barreto, Alziro Dias, Flávio Santos e Marcelino Mendes. Não assinaram Orlando Leite, Altamirando e Gil Moreira. Tudo leva a crer que isso já fazia parte do esquema armado pelo
regime para disfarçar tamanha arbitrariedade e aliviar a situação de seus mais aliados.
Argumentava a Resolução que, em face da vitória do Movimento Revolucionário (sic), iniciado em 31 de março de 1964 quando as forças armadas brasileiras, sintonizadas com o sentimento da nacionalidade, repuseram o governo no caminho da democracia, não podia haver lugar na administração pública para aqueles que contribuíram para o estado de coisas que a “revolução” pos fim.
É público e notória, ressaltava a Resolução, a finalidade ideológica de Pedral Sampaio com o governo deposto e firme à orientação política de Waldir Pires, cujos direitos políticos foram cassados. “É público que as forças armadas, representadas por valoroso contingente, comandado pelo capitão Antônio Bendochi Alves Filho, cumprindo ordens do Alto Comando, acabam de deter o prefeito, para responder por seus atos, criando impossibilidade material que importa em impedimento legal de continuar no desempenho de suas funções”. Justifica nestes termos o presente Projeto de Resolução. Assinam os vereadores Olavo Ramos de Oliveira, Nelson Gusmão, Gil Moreira, Vivaldo Mendes, Misael dos Santos, Floriano Barreto, Alziro Dias, Flávio Santos e Marcelino Mendes.
Como de praxe, para manter as aparências, o presidente da Câmara, Orlando Leite, submeteu o projeto para que a Comissão de Justiça e Constituição emitisse o parecer, e suspendeu a sessão por 30 minutos. Muita gente se aglomerava em frente da Casa e nas ruas esperando por um desfecho que já era previsível.
Reaberta a reunião, a Comissão, baseada nos termos constantes da justificativa deu parecer favorável ao Projeto de Resolução 62, assinado por José Gil Moreira e Altamirando Novais. Logo em seguida o Projeto foi submetido à votação com a respectiva justificativa e o parecer oferecido pela Comissão de Justiça.
Feita a votação nominal, a justificativa e o parecer foram aprovados por unanimidade. Invocando o Artigo da Lei 140 (Lei Orgânica dos Municípios), o senhor presidente declarou vago o cargo de prefeito. Disse ainda que, consoante o mesmo diploma, e de acordo com o entendimento havido com o representante do comando, iria assumir o cargo de prefeito.
Estava ali selado o destino de uma Conquista cassada pelas armas. Naquele momento houve uma ruptura na aliança com o povo, feita através das eleições democráticas que elegeram Pedral Sampaio para governar o município. Toda Conquista fora golpeada e cassada abruptamente. Não foi somente o mandato de prefeito. Foi cassada a vontade popular.
Logo após consolidado o ato ditatorial, foram apresentados dois requerimentos dos vereadores Marcelino Mendes Cunha e Olavo Ramos de Oliveira, solicitando renúncia dos respectivos cargos de vice-presidente e segundo secretário. Aceitas as renúncias, foram indicados os nomes dos parlamentares José Gil Moreira e Floriano Alves Barreto para ocuparem as funções. Na votação, os vereadores foram eleitos.
Usaram das palavras Nelson Gusmão, Floriano, Vivaldo e Flávio, fazendo congratulações com o acontecido. Orlando Leite agradeceu, reafirmando seus propósitos democráticos e cristãos e prometendo fazer tudo em benefício da sociedade. Na ocasião, foi apresentado o nome do vereador Vivaldo Mendes para presidir a Câmara em face do afastamento do titular para prefeito do município. Floriano Barreto – segundo secretário – lavrou a ata assinada pelos onze vereadores.

“TIVE MEDO DE MORRER” 

O pior ainda estava por acontecer diante de toda aquela apreensão do povo. O ex-prefeito Pedral Sampaio foi conduzido para Salvador no dia oito de maio, saindo madrugada de Conquista, na companhia do professor Everardo de Castro em duas caminhonetes, sob as ordens de dois tenentes. Antes, inventaram sair de avião, mas não deu certo. Seu irmão Anfilófio Sampaio (preso em Conquista no mesmo dia oito de maio) foi depois para a capital, na companhia de Franklin Ferraz.
“Daqui fomos diretos para o Quartel do 19º BC (Batalhão de Caçadores), no Cabula, e a ordem era não parar em lugar nenhum” – recordou Pedral. Em certo lugar, nas imediações de Jequié, o ex-prefeito cassado disse ter tido vontade de urinar. Não aguentava mais, mas foi obrigado a segurar a bexiga. ´”Só mais distante resolveram parar o carro”. Na descida, segundo Pedral, foi aquela confusão dos homens para mirar as metralhadoras para minha pessoa e para o professor.
Até aí tudo bem. O problema era que o soldado – motorista dirigia totalmente sonolento, e Pedral se imaginou despencando numa ribanceira fora da estrada. “Foi o momento em minha vida em que tive medo de morrer. Não temia ser torturado. A outra vez que senti medo da morte foi na “Garganta do Diabo” nas Cataratas do Iguaçu quando já estava solto da cadeia, mas vigiado”.
Com temor de perder sua vida naquela madrugada, José Pedral falou para os militares que dirigia bem e se prontificou a levar a caminhonete, mas não houve acordo. A ordem era tocar em frente, sem parar mais em lugar nenhum. Um tenente ficava sempre futucando o motorista para que ele não dormisse. Pedral mantinha os olhos arregalados e atentos, com medo de acontecer um acidente e perder sua vida. Afinal, ele queria continuar vivendo, mesmo diante daquela situação de terror.
A não ser a pressão psicológica, as intimidações com revólver na mesa, palavrões e xingamentos, chamando o detido de “porra”, subversivo e comunista, na prisão de Conquista não chegou a haver tortura física.
Na verdade, no início a repressão podia ser considerada como branda e inexperiente. Além do mais, para atuar nesta área, o regime ainda estava despreparado e não dispunha de estrutura material e humana para tanto. Somente mais tarde, no final dos anos 60, começaram a ser montadas as câmaras de torturas com o apoio dos norte-americanos.
Mesmo assim, Pedral constatou que nos 50 dias em que ficou recluso, em Salvador, respondendo IPM-Inquérito Policial Militar, presenciou muita agressão e brutalidade, especialmente no Quartel General da 6ª Região Militar.


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