Taysa Matos
Ontem e hoje assisti reportagens falando sobre relacionamentos doentios e suas consequências. Em uma dessas matérias as pessoas que participaram fizeram as seguintes perguntas: “Tenho tanto ciúmes da minha mulher, que às vezes acordo ela à noite para perguntar com quem ela está sonhando. Isso já passou do normal?” e “Não consigo controlar os ciúmes do meu marido! Olho mensagens no celular, contas nas redes sociais, a carteira dele, faturas no cartão de crédito. Fiscalizo a quantidade de perfume que ele coloca e as cuecas usadas. Quando ele chega, vou até o carro e olho tudo! Procuro pistas até no lixo! O que faço? Estou prestes a enlouquecer!. Leia o artigo na íntegra.
Isso não é normal! Ninguém tem direito à vida e a individualidade do outro. Sem respeito perde-se o sentido dos encontros (o Direito Penal que o diga). Acredito nas relações leves e distraídas, no caminhar construído pela alegria de estar junto, na embriaguez de andar um ao lado do outro!
“Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque – a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras – e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos..” (Por Não Estarem Distraídos –Clarice Lispector)
No texto, para Clarice assim como para Guimarães Rosa quando diz que “alegre era a gente viver devagarinho, miudinho, não se importando demais com coisa nenhuma. Felicidade se acha é só em horinhas de descuido.” (Grande Sertão: Veredas), o que realmente importa para a felicidade é o descuido, é a distração nos sentimentos. São nessas horinhas desapercebidas de entrega, que a levíssima embriaguez dos encontros acontecem.
Os encontros e suas intensidades estão no cerne das aspirações humanas. Através deles, criamos, construímos e expressamos sentimentos. O encontro com o outro é o complemento do prazer de viver! E, por estarmos vivos, constantemente nos deparamos com o inusitado, que nos faz (re) pensar guerrilhas internas que destronam e fazem ruir pseudo-certezas.
Essas “certezas” presentes no caminho dos (des) encontros, por vezes tortuosos, que afastam a leveza da distração, para dá lugar a sentimentos, adversos do amor e carregados de dominação, desfrutados por todos aqueles que acreditam em relações fluidas, ou seja, por aqueles que percebem o estar junto como algo fugaz, efêmero e inconstante.
Bem, se é inconstante não tem valor e, se não tem valor, não tem importância! Por isso, é permitido controlar, agredir e machucar. É permitido minar a relação com toda e qualquer forma de violência – física ou psicológica -, pois pessoas inseguras precisam ter seus objetos de desejos “debaixo dos pés”, sob controle. E assim, os encontros que seriam complementos se transformam em celas, em aprisionamentos afetivos.
E qual a relação do Direito com esses encontros? Toda. Direito é vida e a vida é feita de encontros. O Direito caminha de mãos dadas com a realidade social e, diante desse aprisionamento afetivo, precisa de normas que assegurem a integridade e dignidade dos vínculos, que regulem as relações humanas, sejam elas temerosas ou não, que possibilitem a liberdade necessária para querer estar na companhia do outro, sem medos e sem amarras.
Nenhuma “certeza” do superlativo da realidade do outro lhe dá o direito de transferir a responsabilidade de suas expectativas, fracassos e sonhos. Ninguém pode exigir que suas carências sejam supridas na medida e completude que deseja. Carência afetiva gera dependência, violência e desencontros. E a dependência emocional gera submissão que tornam normais comportamentos violentos e as amarguras das relações conturbadas, vez que, tudo é justificado pelo medo de perder e, em nome da supervalorização do outro, todo sofrimento é consentido.
Faz tempo que o ciúme possessivo passeia pelo Direito e tem sido motivação para crimes, espancamentos, chantagens emocionais e coação, além de servir como alimento para sustentar o “amor excessivo” ou “excesso de amor” muitas vezes causador da imaturidade emocional, baixa estima, frustração e incapacidade de controle. Como disse Roland Barthes em sua obra Fragmentos de um discurso amoroso, ele é capaz de fazer mal e de expulsar do paraíso, se empenha em procurar imagens (de ciúme, de abandono, de humilhação) que podem ferir; e, aberta a ferida, a sustentar, e alimentar com outras imagens, até que outra ferida venha desviar a atenção. E isso não é amor!
Hoje, tudo é muito fugaz, os afetos são descartáveis e as palavras desacertadas uma rotina. Ouvir requer tempo e esse pra ninguém sobra. Respeito não é sacrifício, renuncia ou infelicidade. Respeito é equilíbrio, é o direito que o outro tem de deixar existir ou de findar. Respeito é a própria motivação do encontro.
Quando deixamos que essa motivação passe a nominar sentimentos desencontrados, corremos o risco de perder a leve sensação da boca entreaberta de admiração, da sede da água da alegria e da liberdade necessária para a embriaguez. Corremos o risco de confundir a distração dos momentos com o entrelaçamento de sentimentos irracionais que sufocam e angustiam que fazem perder a identidade, que fazem perder-se de si!
Portanto, antes de nos perder, deixemos as palavras desacertadas, as poeiras das ruas e os tratamentos ásperos; deixemos os erros e as durezas dos desencontros para nos desnudar e viver a felicidade da distração, para deixar a carta chegar e impedir que o fio do telefone seja cortado pelo deserto, antes que tudo, tudo aconteça, por não estarmos mais distraídos.
[Confira a reportagem do Jornal da Manhã]
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Taysa Matos / Professora de Direitos Humanos
Mestre pela UFPB; Esp. em Metodologia e Gestão do Ensino Superior; Graduada em Direito; Profa. de Direitos Humanos e Cidadania e Vice-Coordenadora do Curso de Direito da FAINOR; Membro do Conselho de Segurança de Vitória da Conquista-CONSEG; Autora do capítulo do livro Perspectivas Interdisciplinare…
Uma Resposta para “Tudo por não estarem mais distraídos!”
Adriana Lopes
Muito bom o texto de Taysa Matos.
De acordo com a psicanálise, o ciúme é a inquietação mental causada por suspeita ou receio de rivalidade nos relacionamentos humanos. É uma distorção, um exagero, um desequilíbrio do sentimento de zelo.
Adentrando na intimidade deste sentimento, vamos descobrir que ele é “medo”,
medo de algum dia ser dispensável à pessoa com a qual se relaciona; é o medo de ser abandonado, rejeitado ou menosprezado; medo de não mais ser importante; medo de não ser mais amado, enfim, é, de certa forma, medo da solidão.
Creio que o ciúme “insegurança” precisa ser substituído pela CONFIANÇA “certeza”, que é sim uma real prova de amor.