Taysa Matos
A arte, seja em que segmento for, sempre trouxe uma valiosa contribuição ao Direito. De forma geral, a inter-relação desses campos possibilita a utilização de metáforas capazes de proporcionar diferentes análises dos fenômenos jurídicos e sociais. Pensar o Direito sob esse olhar é tratá-lo como um “delírio” possível, como uma utopia presente no caminhar que se deseja como ideal. Leia na íntegra.
No cinema, alguns filmes nos proporcionam substancias necessárias para entender as atuais complexidades da sociedade (pós) moderna, ampliam nossos horizontes, geram sonhos e renovam o Direito através de signos e significados.
Em 1984, fomos apresentados ao personagem de Freddy Kruerger (Wes Craven), no filme “Hora do Pesadelo”. O filme de terror trás um vilão sádico, com uma história de vida traumática que, por meio da manipulação dos sonhos, consegue descobrir os piores medos, matar repetidas vezes os jovens em seus sonhos, tomar sua alma e divertir-se com isso. O poder de controlar os sonhos deu ao personagem nomes como: “Lorde dos Pesadelos” e “Senhor dos Sonhos”.
No filme, Freddy Kruerger, por ter sido queimado vivo, possui uma imagem deformada e ameaçadora, tendo no lugar dos dedos garras/navalhas, com as quais, pratica assassinatos brutais. As vítimas, jovens sempre amedrontados pelo medo, quando dormiam e sonhavam, corriam o risco de não mais voltar a acordar. No mundo dos sonhos, o vilão era imortal e seus poderes só perdiam força quando os “rebeldes” perdiam o medo, tomavam o controle dos seus sonhos e acordavam antes de serem mortos ou, ainda, quando o traziam para o mundo “real” e (re) agiam.
Ao analisarmos o filme, concluímos que os sonhos, quando controlados, tornam-se pesadelo, deixando sua essência transformadora para se apresentar como possível morte. O sonho permite que a vida seja não só vivida como desejada, ele nos remete à idéia de utopia, de plurais possibilidades da realidade, nos conduz, quase que impulsivamente, ao imaginário de dias melhores. Quem não sonha, não constrói caminhos, não se movimenta e não se liberta. Se não é pra sonhar, não deixe viver!
A utopia está para o Direito, como o pão está para a vida. É condição necessária para suplantar a ordem vigente em direção à construção de um futuro imaginado. São os pensamentos utópicos que libertam o Direito do poder da lei, direcionando-o para seu fim maior: a Justiça. É a utopia que nos faz perder o medo, que torna o improvável possível, que nos liberta do “Lorde dos Pesadelos”, que rouba sonhos. É esse pensamento, de questionável existência, que emancipa o pensar político-social quando aflora a vontade de mudanças, pois mesmo que não possamos saber o futuro, temos o direito de dizer como o queremos.
Assim como nos dedos de Freddy Kruerger, inúmeras navalhas sociais matam vidas – e sonhos -, arrancam ideais, calam verdades e param indignações. Por medo, cortam a vontade de romper limites e de lutar pela dignidade, de, conscientemente imperfeitos, continuar a sonhar. Esses usurpadores de sonhos nos obrigam a ficar de olhos abertos e só enxergar o “real” posto, permanecendo estáticos na fumaça da morte presumida, sem buscar nem encontrar, aprisionados no pesadelo.
Mata-se diariamente a utopia, quando não mais se acredita no delírio possível, morre com ela aqueles que se permitem controlar e perdem-se dela os que não possuem esperança. Pois, para vivê-la, é preciso acreditar no que diz a música de Milton Nascimento: “vamos defender a nossa utopia e esperar que os nossos sonhos teimosos um dia se realizem” (Coração Civil).
Por isso, uma visão limitada da prática diária do Direito pode matar os sonhos daqueles que acreditam no exercício da Justiça como instrumento de transformação social, pois, é preciso enfrentar os problemas sociais, tal qual enfrentamos os pesadelos e superar medos e contratempos que surgem no dia a dia. Por mais que o sonho pareça intangível, ele está tão presente quanto os problemas e deve ser encarado como parte de nosso cotidiano. Inserir o sonho na realidade do Direito é uma tarefa a ser perseguida insistentemente, pois, tal postura, pode significar a diferença entre acomodar-se com uma ordem estática ou permitir a dinâmica humanização da Justiça.
Sendo assim, para vivenciarmos essa humanização, é preciso, antes, compreendermos que o sonho e a realidade se retroalimentam e até se confundem e que a limitação dessa relação nos leva a desacreditar nos devaneios possíveis das transformações. Para o Direito, viver uma realidade acomodada, fixa e limitada, que se contrapõe aos sonhos, é viver a aplicabilidade da letra fria da lei, mas, viver uma realidade direcionada a atingir o inatingível, um real dinâmico e aberto, é viver a consolidação da matéria onírica que nos faz desejar o movimento, que nos impulsiona a ter a coragem necessária para enfrentar um mundo (Direito) em constante transformação.
Taysa Matos / Professora de Direitos Humanos
Mestre pela UFPB; Esp. em Metodologia e Gestão do Ensino Superior; Graduada em Direito; Profa. de Direitos Humanos e Cidadania e Vice-Coordenadora do Curso de Direito da FAINOR; Membro do Conselho de Segurança de Vitória da Conquista-CONSEG; Autora do capítulo do livro Perspectivas Interdisciplinare…