Taysa Matos
É recorrente a problemática dos Direitos Humanos nas atuais democracias, fato que, inevitavelmente, nos leva a questionar a formação e consolidação do Estado. Esses Direitos, apontados como históricos, universais, preferenciais e indivisíveis, precisam da participação e atuação do Estado, para sua efetivação/concretização. Entretanto, reconhecer a necessidade dessa presença, não significa aceitar suas contradições, insuficiências e discriminações. Pelo contrário, reconhecer o papel do Estado nesse processo significa (re) pensar sua formação, para que este proporcione, a todos, a efetividade e aplicabilidade necessárias aos Direitos conquistados. Leia o artigo.
Teoricamente, vivemos no Brasil um Estado social, que tem na democracia a base dos seus preceitos constitucionais, definindo e garantindo Direitos. Isso significa dizer que esse modelo de Estado, assegurado pelo regime político democrático, é condição necessária para a interpretação e aplicação da ordem jurídica vigente, descrita no caput do artigo 1º da Constituição Federal que, por sua vez, institui o Estado Democrático de Direito e seus fundamentos, a saber: a soberania (inciso I), cidadania (inciso II), a dignidade da pessoa humana (inciso III), os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (inciso IV) e o pluralismo político (inciso V).[1]
Ao adotar tais princípios como fundamento do Estado, a Constituição, de caráter prestacional, optou pela positivação jurídica de valores sociais que pudessem servir não somente de base à interpretação da norma, mas, também, para sua criação, direção e regulação de fatos concretos. Nesse contexto, as leis, em seu sentido de normas abstratas gerais, deixam de ser instrumento por excelência do Estado, para se transformar em promoção dos objetivos sociais e realização de princípios democráticos.[2]
Essas normas de eficácia jurídica e social descritas em nossa lei maior demonstram a relevância da postura de um Estado comprometido com a problemática dos Direitos Humanos. No entanto, quando se trata de sua exigibilidade e aplicabilidade na defesa da dignidade humana que fortaleça a cidadania, ainda vivemos um discurso jurídico que exige, mas não pratica a correta aplicação das normas garantidoras de Direitos Humanos Fundamentais.
O fruto desse hiato jurídico se apresenta nas mazelas vividas por parte da população que sofre as consequências de pertencerem a um Estado Democrático/Social de Direito, que ainda permite, aceita e convive em “perfeita harmonia” com a existência dos “invisíveis sociais” ou, como gosto de comparar, com os “apátridas nacionais”, isso é, com aqueles que, mesmo nascendo em solo brasileiro nunca pertenceram, talvez nunca pertencerão, a esta nação, que não se reconhecem cidadãos, nem são reconhecidos, não possuem identidade ou identificação. São somente “o resto do resto do mundo” (O Resto Do Mundo – Gabriel O Pensador).
Gabriel O Pensador através da música O Resto Do Mundo, descreve, minuciosamente, como é viver à margem da sociedade, suas consequências e desigualdades e o quão permissivo isso é. A letra dimensiona ainda o sentimento de quem se autodenomina “o resto do mundo”.
Eu queria morar numa favela
Eu queria morar numa favela
Eu queria morar numa favela
O meu sonho é morar numa favela
Eu me chamo de excluído como alguém me chamou
Mas pode me chamar do que quiser seu doutor
Eu não tenho nome
Eu não tenho identidade
Eu não tenho nem certeza se eu sou gente de verdade
Eu não tenho nada
Mas gostaria de ter
Aproveita seu doutor e dá um trocado pra eu comer…
Eu gostaria de ter um pingo de orgulho
Mas isso é impossível pra quem come o entulho
Misturado com os ratos e com as baratas
E com o papel higiênico usado
Nas latas de lixo
Eu vivo como um bicho ou pior que isso.
Eu sou o resto
O resto do mundo
Eu sou mendigo um indigente um indigesto um vagabundo
Eu sou… Eu não sou ninguém…
(Gabriel O Pensador – O Resto do Mundo)
Segundo a filósofa e cientista política Hannah Arendt, a cidadania é o direito a ter direitos, é a igualdade em dignidade e direitos dos seres humanos e não mais um dado qualquer. Para ela, essa cidadania é estabelecida a partir da convivência coletiva e com o acesso de todos aos espaços públicos, que permitam a construção de um mundo comum através dos direitos humanos. Mas, como diz esse trecho da música, existem os excluídos dessa construção, os sem nomes ou documentos, os sem identidade, os que não são ninguém. Existem os sem orgulho e sem dignidade, os indigentes e “os restos, os restos do mundo!”[3]
Eu to com fome
Tenho que me alimentar
Eu posso não ter nome, mas o estômago tá lá
Por isso eu tenho que ser cara-de-pau
Ou eu peço dinheiro ou fico aqui passando mal
Tenho que me rebaixar a esse ponto porque a necessidade é maior do que a moral
Eu sou sujo eu sou feio eu sou anti-social
Eu não posso aparecer na foto do cartão postal
Porque pro rico e pro turista eu sou poluição
Sei que sou um brasileiro
Mas eu não sou cidadão
Eu não tenho dignidade ou um teto pra morar
E o meu banheiro é a rua
E sem papel pra me limpar
Honra? Não tenho
Eu já nasci sem ela
E o meu sonho é morar numa favela
Eu queria morar numa favela
Eu queria morar numa favela
Eu queria morar numa favela
O meu sonho é morar numa favela
A minha vida é um pesadelo e eu não consigo acordar
E eu não tenho perspectivas de sair do lugar
A minha sina é suportar viver abaixo do chão
E ser um resto solitário esquecido na multidão…
(Gabriel O Pensador – O Resto do Mundo)
A Ministra Carmem Lúcia (STF), ao comentar o Art. 1º da Declaração dos Direitos Humanos, disse que gente é tudo igual. Podem ser diferentes em sentimentos, mas a essência é uma só, não muda. Segundo ela, o que muda é o invólucro e não o miolo. Gente possui as mesmas necessidades, os mesmos medos, desejos e esperanças, e também espera! Ressalta ainda, que o sofrimento é sofrido igual, que a dor dói pra todo mundo e a alegria, essa também se sente igual.[4]
Por que se sente igual? Porque “gente” é “gente” e precisa ser tratada como tal. Gente tem valor maior, uno, digno, que vai além da norma. Então, se for assim, como nos deparamos diariamente com situações como as descritas na música? Nesse caso o que/quem é gente? Como entender a aceitação oculta nas entranhas da minoria da sociedade que não conhece e não vê gente? Como lidar com o preconceito aos que vivem abaixo do chão, aos esquecidos na multidão? Como (com) viver com “o resto, o resto do mundo?” Pois, como disse Caetano Veloso: “Gente quer comer, gente quer ser feliz, gente quer respirar ar pelo nariz.” (Gente – Caetano Veloso)
Frustração
É o resumo do meu ser
Eu sou filho da miséria e o meu castigo é viver
Eu vejo gente nascendo com a vida ganha e eu não tenho uma chance
Deus, me diga por quê?
Eu sei que a maioria do Brasil é pobre
Mas eu não chego a ser pobre eu sou podre!
Um fracassado
Mas não fui eu que fracassei
Porque eu não pude tentar
Então que culpa eu terei
Quando eu me revoltar quebrar queimar matar
Não tenho nada a perder
Meu dia vai chegar
Será que vai chegar?
Mas por enquanto…
(Gabriel O Pensador – O Resto do Mundo)
O educador Paulo Freire disse que a primeira condição para alguém ser capaz de agir e refletir é estar no mundo e saber-se nele, ou seja, é se reconhecer parte dele. Ora, para esse reconhecimento, é necessário reconhecer-se como sujeito digno e cidadão pleno. A ausência dessa dignidade impossibilita a condição necessária para a ação e reflexão, para o reconhecimento de cidadão. A ausência de dignidade transforma o ser humano em instrumento, em coisa, pois, viola uma característica própria e delineadora da natureza humana, a vida, a liberdade e, principalmente, a igualdade. “Gente é tudo igual!”.[5]
Freire fala ainda que a emancipação humana se dá a partir dos espaços públicos e da cidadania. E essa cidadania só acontecerá através da conquista do seu espaço na sociedade, nunca, através de uma eventualidade ou concessão. Pois, quando há conquista há liberdade, há a construção do alicerce necessário para o movimento de busca em que estão inscritos os homens, como seres inacabados. A libertação é um parto e o homem que nasce deste parto é um homem novo.[6]
Eu não sou registrado
Eu não sou batizado
Eu não sou civilizado
Eu não sou filho do Senhor
Eu não sou computador
Eu não sou consultado
Eu não sou vacinado
Contribuinte eu não sou
Eu não sou comemorado
Eu não sou considerado
Eu não sou empregado
Eu não sou consumidor
Eu não sou amado
Eu não sou respeitado
Eu não sou perdoado
Mas também sou pecador
Eu não sou representado por ninguém
Eu não sou apresentado pra ninguém
Eu não sou convidado de ninguém
E eu não posso ser visitado por ninguém
Além da minha triste sobrevivência eu tento entender a razão da minha existência
Por que que eu nasci?
Por que eu to aqui?
Um penetra no inferno sem lugar pra fugir
Vivo na solidão mas não tenho privacidade
E não conheço a sensação de ter um lar de verdade
Eu sei que eu não tenho ninguém pra dividir o barraco comigo
Mas eu queria morar numa favela, amigo
Eu queria morar numa favela
Eu queria morar numa favela
Eu queria morar numa favela
O meu sonho é morar numa favela.
(Gabriel O Pensador – O Resto do Mundo)
Portanto, a crise da efetividade dos direitos humanos começa a partir do olhar que se tem em relação ao outro. Quando o Estado e todo o mais vêem e não enxergam desaguam na intolerância. Declaram ter desistido do ser humano e com ele da esperança. Porque os “invisíveis sociais” estão presentes em toda parte, ontem, hoje, e, espero estar enganada, amanhã!
A pior solidão é a coletiva, por isso, sobreviver, dia após dia, na condição de ninguém e ainda ter que entender a razão da sua existência é ser marcado por uma imensa desigualdade social, é, como alerta o músico, viver no inferno sem lugar pra fugir. Porque gente quer lavar roupa, amassar o pão, arrancar a vida com a mão. (Caetano Veloso – Gente). Sendo assim, efetivar Direitos e garantias fundamentais é reconhecer que gente é o espelho da vida, que gente é para prosseguir, pra durar e crescer, gente é pra brilhar, não pra morrer de fome (Caetano Veloso – Gente). É trocar o fracasso e a frustração pelo orgulho de ser GENTE!