Feridas abertas

Foto: Blog do Anderson
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Jeremias Macário

Tratava-se de uma guerra, e numa guerra tudo é permitido, inclusive a tortura brutal e desumana para arrancar confissões. As vítimas eram simplesmente “terroristas subversivos e comunistas” que tramaram uma ditadura de esquerda e provocaram atentados com mortes contra a “revolução de 1964”, como assim ainda ensinam nos quartéis e colégios militares. Leia a opinião de Jeremias Macário.

 Estes argumentos e mais outros persistem na voz dos generais da ativa e da reserva, para tripudiar o relatório da Comissão Nacional da Verdade que, na verdade, repetiu muitas coisas já reveladas e foi covarde por não enfrentar a força e os insultos dos militares. Para eles (generais), não existiu golpe civil-militar.

   As feridas dos mortos e desaparecidos insepultos continuam abertas porque, como já era previsto, a Comissão que durou quase três anos não tinha o poder de punir os torturadores. Desde a redemocratização com a eleição de Color de Mello (1989) até 2014 (25 anos), os presidentes da República se mostraram politicamente medrosos.

 Mesmo que tivesse sido uma guerra (estranha batalha de metralhadora contra estilingue), a tortura, tida pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e pela Declaração dos Direitos Universais como crime contra a humanidade, não justificaria.

   Ademais, não existem registros de que aqueles que lutaram contra a ditadura e pegaram em armas tenham praticado torturas. Houve mortes nos confrontos, e essa de que as organizações políticas pretendiam instalar no país uma ditadura de esquerda não é também fundamento para anistiar a tortura e os torturadores.

 Nenhum dos mortos da resistência ficou sem sepultura. É inaceitável rebater os atos de tortura apontando que o outro lado assaltou bancos e sequestrou. E aqueles que não participaram da luta armada; não foram sequestradores; defendiam a liberdade e a democracia; eram nacionalistas e, mesmo assim, foram barbaramente torturados?

 Como o brasileiro já não tem o hábito da leitura, pelo menos lesse o relato do sofrimento do dominicano Frei Tito Alencar Lima quando esteve preso na Oban (Operação Bandeirantes) no final de 1969 e 1970. Seus algozes torturadores o perseguiram até o último segundo do seu suicídio em agosto de 1974 num convento do interior da França. É apenas um dos exemplos monstruosos e aberrantes dos crimes cometidos pelo Estado, cujos agentes e locais públicos eram pagos com o dinheiro do povo.

 Reza a Constituição que o presidente da República é o comandante supremo das forças armadas, e o Regulamento Disciplinar do Exército diz que o militar, especialmente da ativa, não pode se pronunciar em relação a questões políticas.

 No entanto, não foi isso que se viu da parte do general de Exército da ativa, Sérgio Etchegoven, chefe do Departamento Geral do Pessoal, que repudiou o relatório, classificando de “leviano” o trabalho que apontou 377 civis e militares como responsáveis pelos crimes cometidos no período de 1964 a 1985. É a primeira manifestação de um general da ativa.

 Pois é, não deu em nada. A sensação que passa é de tremendo medo quando os leões rugem e ainda ameaçam cravar seus dentes ferozes. Quem continua enjaulado e ferido é o civil porque os presidentes eleitos (Color, Fernando Henrique, Lula e Dilma) não tiveram a coragem política de fechar esta ferida e dar um basta nessas afrontas.

 Na vizinha Argentina, o primeiro presidente civil Raul Alfonsín (advogado dos presos políticos) mandou abrir os processos (leis de Obediência Devida e Ponto Final) e lá o Judiciário teve a força de prender os torturadores, inclusive um presidente da República. Lá, as leis de anistia foram anuladas. O mesmo aconteceu no Chile do ditador Pinochet. Anistia não significa que a nação perdeu sua memória.

 Na mesma semana da divulgação do relatório da Comissão em nosso país, na Argentina, pela primeira vez desde a redemocratização, o militar Ernesto Guillermo Barreiro, acusado de ter violado os direitos humanos durante a última ditadura (1976-1983), revelou o lugar onde foram enterrados 25 presos políticos assassinados.

  Aqui, a presidente Dilma, que também foi torturada, só chora e coloca panos quentes diante da lista de 434 mortos ou desaparecidos. Os outros eleitos pelo voto direto só ficaram no lamento e não tomaram posições políticas firmes para, pelo menos, cicatrizar as feridas das famílias que perderam seus entes queridos e nem tiveram o direito de sepultar seus mortos. Até agora não existiu, ao menos, um pedido de desculpas e perdão da parte dos militares.

   Depois de ouvir 1.116 depoimentos, o relatório publicou 4.328 páginas de feridas abertas de como funcionava a cadeia de comando militar. Não é novidade nenhuma a Comissão revelar que a tortura era uma política de Estado, e não apenas resultado de ações isoladas cometidas por membros do regime que agiam por conta própria.

 A Comissão ficou no óbvio ao pedir punição aos torturadores e considerar a tortura como crime contra a humanidade (imprescritível). Na contramão dos direitos humanos, em 2010, o Supremo Tribunal Federal deu como legítima a Lei de Anistia. Como disse o editorial de um jornal impresso baiano: “O fim da ditadura completa 30 anos em 2015. Continua uma ferida aberta” Por quanto tempo continuará assim?


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