Danillo Bittencourt
A felicidade é um direito natural de todo ser humano. E esse também, não diferente, era o desejo de Fernanda. Garota, com suas momentâneas transformações corporais, utilizava da prostituição como uma maneira de conquistar sonhos, realizar desejos e se expressar afetiva, amorosa e sexualmente. E, na semana que paramos toda a cidade para celebrar o Dia da Visibilidade de Ser Travesti e de Ser Transexual, tiram o seu sorriso, seu olhar doce e sua beleza de nossas vidas. Por que e até quando iremos conviver com violências, discriminações e fobias em relação à comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT)? Leia na íntegra a opinião de Danillo Bittencourt.
Realizamos, neste mês de janeiro, mês de comemorar a luta das travestis e transexuais, uma série de oficinas de arte transformista como possibilidade de inserção da cultura trans em nosso cotidiano. Encerramos as oficinas no dia 23 de janeiro e estávamos na organização do grande Espetáculo da Visibilidade Trans – Show de Divas, espaço que culminaria as apresentações artísticas de cada participante do projeto. Contudo, o preconceito mais uma vez nos tomou de assalto, matando, desamparando e acabando com alguns sonhos: um corpo foi encontrado com sinais de diversas perfurações oriundas de disparos por arma de fogo em uma estrada de terra na Lagoa das Flores.
E este preconceito, que é diário, não termina nem com o encerramento da vida. Todo o processo, que por si só já é doloroso, aumenta quando a identidade de ser travesti, de ser puta, é desvalorizada entre os agentes públicos responsáveis pelos procedimentos de reconhecimento do corpo. As piadas, as inferências binárias (é ele ou é ela?), as notícias nos blogs de nossa cidade sem qualquer respeito à identidade feminina e as ausências ativistas e políticas neste momento de dor: tudo reforça o quanto precisamos avançar na educação do afeto, do respeito ao outro e da cidadania.
Para isso, numa sociedade, os sujeitos precisam iniciar um processo afetivo caracterizado pelo surgimento do nós, entidade que engloba todos os sujeitos de uma mesma sociedade numa comunidade. O desejo de cuidar desi, do outro e do nós desperta em sujeitos saudáveis a noção de solidariedade e de cidadania, que é o ato de cuidar da cidade onde a sociedade se assenta. Valorizar a própria vida, ocuidado pessoal, é poder ter a noção do valor da vida do próximo.É o ato maior de cidadania, pois despertar em alguém o desejo de cuidar é inaugurar no espírito desse sujeito a importância e o prazer do ato voluntário, sem conceitos e pré-conceitos.
É pela afetividade, no campo das políticas públicas, que precisamos avançar. A garantia da identidade, do reconhecimento de ser quem desejamos ser, já é um primeiro passo. Com Fernanda, era assim: seus longos loiros, pele clara e olhos castanhos, encantava a cada um que, nas esquinas da BR-116, permitiam-se enfrentar os modelos rígidos de identidade sexual e de gênero para denunciar a inoperância de seus conceitos e definições. Tanto como travesti quanto profissional do sexo, inaugurava, nas ruas de Vitória da Conquista, novos processos de subjetivação e de existencialização.
Para Fernanda, o corpo não era tomado como algo terminado, mas comouma materialidade provisória, mutante e mutável, vulnerável as mais diversas formas de intervenção, sejam elas, científicas, tecnológicas e/ou eclesiásticas,sejam elas transgressivas e/ou marginais, políticas e/ou culturais, clarificando que o corpo não é universal e absoluto, mas plástico, flexível e relacional,portanto, produzido através de sua socialização e coletividade.
Contudo, essa condição marcada intensamente pela produção das corporalidades é construída em contextos sociais e culturais distintos, nos quais a maioria das travestis se situa em territórios bastante prejudicados pelas desigualdades sociais, econômicas, políticas e culturais, e pelas intolerâncias frente aos direitos sexuais e humanos, muitas, inclusive, vivendo em situação de miséria.
Dentro de um contexto negativo de acesso a bens e serviços de qualidade, e de dificuldades das travestis em frequentar escolas sem exclusão, de atendimento sem discriminação nos serviços de saúde, de acesso a emprego e seguridade, de ser respeitada como cidadã, além de discriminações presentes nas relações familiares, de amigos e de vizinhos, suas existências acabam ficando restritas a um território existencial muito empobrecido de afetos e o acesso à informação na maioria das vezes é bastante prejudicando.
Para se ter uma clara ideia do que desejamos e lutamos construir, um relatório sobre assassinatos de homossexuais no país apontou Vitória da Conquista, no sudoeste baiano, como a cidade com mais crimes contra LGBT no estado da Bahia. Em 2014, foram quatro mortes na cidade, enquanto que o estado registrou 24 mortes. No país, foram 326 óbitos, um aumento de 4,1% em relação a 2013, que registrou 313 vítimas fatais. De acordo com o relatório organizado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), as cidades de Salvador, Santa Brígida e Teixeira de Freitas, registraram três mortes no ano passado.
Queremos uma cidade que respeite suas cidadãs travestis e transexuais. E não apenas em partes, em corpo e em sexo. Pois, por não ser totalmente aceita, ela transita por regiões liminares entre a exclusão e inclusão, entre a repressão e o aceno em alguma escola pública, entre a violência e o seu consumo pela mesma sociedade que a agride. Entre a aceitação e rejeição. Entre se nascer homem e se pretender mulher. A ambiguidade de sua condição reflete a ambiguidade do meio cultural e social no qual estão inseridas.
Fernanda era uma de nós! E, como todos nós, é pelos fragmentos de um universo social mosaico que toma corpo esta personagem. Com a criatividade de um artista, reunimos, na rua, na noite, pedacinhos aqui, ali e acolá e pretendemos reverti esta inversão em inserção social; definindo outros lugares a nossas travestis, a nossas transexuais, a nossas putas. Aqui, as estratégias e táticas sociais utilizadas por nosso povo nesta cidade sublinha particularidades da cultura urbana local e coloca em outro patamar de discussão: o da alteridade, da relativização e da feminilização da sociedade.
POR UMA CONQUISTA TRANS, SEM SANGUE DA GENTE NAS PISTAS E NAS MADRUGADAS DA PROSTITUIÇÃO!
*Danillo Bittencourt, ativista de direitos humanos, é Coordenador de Políticas de Promoção da Cidadania e Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Tranxeuais, órgão vinculado à Secretaria de Desenvolvimento Social da Prefeitura de Vitória da Conquista – Bahia.
Uma Resposta para “Pelo direito de ser quem quisermos ser. Pelo respeito de ser travesti. Ser trans. Ser Puta!”
FERNANDA
Achei bonito o discurso, mas seria bem melhor se fosse um discurso com fundamentos, lamentável a morte, mas não podemos tentar colocar na cabeça das pessoas que prostituição é algo tão normal quanto você falou, me desculpe Danillo, mas mesmo nos tempos que estamos não é tão facil aceitar a prostituição e escancara-lá assim.