Joana D’Arck
Nelson Mandela veio uma vez à Bahia, em 1991, e aqui também marcou e disse a que veio. E eu estava ligada, presente. Repórter da edição dominical da Tribuna da Bahia, trabalhando no plantão do sábado, com a última pauta a cumprir para fechar o dia, eu, o editor, Grant Mariano, e o diagramador, Jorge Pulgas, à espera. Felizmente não havia celular à época (Ui! Essas lembranças me fazem sentir com um século nas costas! O que me consola é que o avanço da tecnologia faz todo mundo se sentir assim em algum momento). Ou eu seria totalmente neurótica nesse episódio. Surtaria mesmo!. Leia na íntegra.
Às 9 horas, lá estava o secretário da Mesa da Câmara Municipal, vereador Castelo Branco, todo garboso e orgulhoso, porque cabia a ele ser o primeiro a receber, cumprimentar e conduzir o ilustre homenageado (nada a ver com alguma identidade com a causa heróica de Mandela. Era só uma coisa regimental). A Casa Legislativa mais antiga do Brasil estava paramentada para conceder a Mandela o título de Cidadão de Salvador, uma proposta de autoria do então vereador do PCdoB, Javier Alfaya (este sim, identificado com a luta).
Mandela cumpriria aqui uma agenda grande para o curto tempo, mas o horário do voo não colaborou. Mas, não se sabe porque, a toda hora vinha um aviso da chegada do homem. Bléim, bléim, bléim…tocava o sino da Câmara, o mais antigo, belíssimo, lá no alto do histórico prédio. O sino tocava para anunciar a chegada do ilustríssimo convidado, seguindo o ritual dos tempos do Império, quando as badaladas anunciavam nova determinação do Governo e as pessoas se juntavam na Praça Municipal para ouvir a leitura do pergaminho.
E nada de Mandela. Castelo Branco se empertigava, ajeitava o bigode branco e a gravata. Nada. A mulher dele suspirava e descansava os pés, alternando um e outro fora do sapatinho de salto fino que causava dor lancinante. Isso se repetiu pela manhã e invadiu a tarde.
Almoço não estava previsto e cada qual foi se virando ali pelo Palace Hotel (que tinha o restaurante mais procurado pelos vereadores, à época) e restaurantes da redondeza. E a tarde foi passando e nada de Mandela.
O líder africano cumpriu o protocolo: foi recebido no Aeroporto Dois de Julho, seguindo para o Palácio de Ondina, onde foi recepcionado com um almoço pelo então governador Antonio Carlos Magalhães, cuja biografia se destoava totalmente da sua, depois seguiu para o Palácio Thomé de Souza, onde mais uma vez cumpriu à risca o que manda a programação oficial. Foi recebido pelo então prefeito Fernando José, que quando radialista dizia que matava a cobra e mostrava o pau e depois virou um telhado de vidros com popularidade totalmente despencada, isolado politicamente e enfrentando ameaça de impeachment.
Foi também o telhado de vidro do Palácio Thomé de Souza que segurou Mandela, através de uma ardilosa manobra política do prefeito com o seu líder na Câmara Municipal, o vereador Dionísio Juvenal, autor de homenagem com inauguração de um busto de bronze do líder africano (a estátua foi levada depois para o bairro da Liberdade), que roubou mais tempo ainda.
Na Câmara Municipal, a poucos metros do prédio da Prefeitura, o clima se exasperava. Mandela tá chegando! Dizia Castelo Branco de vez em quando, após novas badaladas, colado na porta do prédio histórico. E nada, e nada, e nada. E lá se vão as horas e os presentes desmanchados, suados, gravatas incomodando, sapados inchando os pés de todos no plantão do dia inteiro. E Pixéu, o conhecido funcionário responsável pelo sino, também reclamando, com seus botões, da dor nos braços de tantas badaladas.
Perto das 19 horas veio a notícia que causou cena de novela. O presidente da Câmara Municipal, Osório Villas Boas, anunciou que Mandela não iria mais à Casa para receber a homenagem. Todos ficaram de queixo caído e olhos arregalados.Oh,oh,oh! Como assim? Como era possível ele fazer isso, depois de uma manhã e uma tarde de espera ansiosa? O impacto da notícia foi o mesmo de um esperado casamento em que a noiva desiste na hora de ir para o altar. Osório Villas Boas fez drama, discurso de protesto contra a desfeita de Mandela ao legislativo municipal, disse que a Casa jamais acataria outra proposta para homenageá-lo, nem marcaria nova data para entrega do título, caso voltasse à capital baiana. Javier Alfaya não se conteve. Encheu os olhos d’água diante da frustração de não poder entregar o título ao líder negro, mas nada disse. Foi derrotado pela manobra dos aproveitadores da situação. Uma pena.
Mandela cumpriu o protocolo até onde pode. Mas chegou o momento em que precisou escolher, diante do curto tempo, entre mais uma recepção oficial e a oportunidade de falar diretamente ao povo. Sabiamente foi à Praça Castro Alves, onde emocionou mais de 150 mil pessoas, num encontro animado ao som de músicas criadas e executadas por artistas baianos, ao longo da década de 80, clamando pelo fim da apartheid e pela liberdade do ativista negro.
*Texto da jornalista Joana D’Arck, publicado no jornal Tribuna da Bahia e no Portal Luís Nassifi