Educação: após polêmica na UESB, estudantes denunciam falsos cotistas em universidades baianas

Foto: BLOG DO ANDERSON
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Estudantes do curso de Medicina que chegam no campus da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), em Santo Antônio de Jesus, com carros importados. Filhos de donos de clínicas, de proprietários de terras… Só que algo estava fora do lugar: esses mesmos alunos teriam entrado na instituição concorrendo às vagas reservadas ao sistema de cotas. Só este ano, 10 denúncias de fraudes desse tipo foram feitas em, pelo menos, três universidades públicas da Bahia. Além da UFRB, há casos relatados nas universidades estaduais do Sudoeste da Bahia (UESB) e de Santa Cruz (UESC). Nessa última, assim como na UFRB, foi a primeira vez que a fraude foi relatada à ouvidoria. A denúncia é recente, foi no início do mês. Já na UESB, alunos ainda cobram a investigação de, pelo menos, 30 colegas que podem ser falsos cotistas. Na UFRB, quatro processos já estão em andamento para investigar oito denúncias referentes a uso indevido de cotas socioeconômicas e raciais. Todos os casos são de estudantes que ingressaram em 2015.2, no curso de Medicina, após cursar três anos do Bacharelado Interdisciplinar em Saúde. Confira a reportagem do Correio.

Segundo o coordenador de ações afirmativas do movimento estudantil da UFRB, Antonio Bastos, o número pode ser maior. “No próximo dia 13, iremos ao MPF (Ministério Público Federal) denunciar caso por caso. Já somam mais de uma dezena. Diversos desses estudantes não têm a menor possibilidade de estar enquadrados na questão socioeconômica porque a família tem posse, questão financeira equilibrada e até carro importado”, afirma Bastos.

Além disso, o critério da autodeclaração acaba sendo um problema. “O racismo no Brasil não é genético, é pelo fenótipo. Tem cotista que, quando a gente vai ver, parece que nasceu na Escandinávia, na Suíça. Essa autodeclaração está sendo utilizada de forma criminosa por alguns”, considera a  liderança estudantil.

Através da assessoria, a UFRB disse que tomou “as providências necessárias” para apurar as denúncias, com abertura de processo administrativo e notificação para defesa. No dia 24 de março, a UFRB criou um grupo para propor medidas de acompanhamento e controle do sistema na universidade, com prazo de 60 dias para apresentar resultados.

Sudoeste do Estado
Em Vitória da Conquista, na Uesb, a indignação dos estudantes motivou uma manifestação no dia 15, cobrando a investigação de mais de 30 casos em que há suspeita de fraude no sistema de cotas – especialmente nos cursos de Direito e Medicina. Foi mais um capítulo de um processo que, há três semanas, levou à condenação de uma aluna de Medicina por ocupar uma vaga como cotista sem ter direito a ela.

No fim do mês passado, a Justiça condenou a estudante Maiara Aparecida Oliveira Freire, 26 anos, a dois anos de prisão, em primeira instância, por fraudar o sistema de cotas da universidade. Segundo o Ministério Público do Estado, Maiara ingressou em 2013 e usou uma declaração de endereço falsa para ter acesso à concorrência de reserva de vagas para quilombolas, no campus de Vitória da Conquista, Centro-Sul baiano.

Na matrícula, a estudante apresentou uma comprovação de que morava em comunidade remanescente quilombola na zona rural de Livramento de Nossa Senhora, no Centro-Sul, mas a promotoria ouviu pessoas que disseram que ela nunca morou no local.

Maiara vai responder por uso de documento falso e falsidade ideológica. Mas, pela decisão do juiz Clarindo Lacerda Brito, da 2ª Vara Criminal de Vitória da Conquista, é a Uesb que deverá definir se a estudante será expulsa do curso. A universidade instaurou um Processo Administrativo Disciplinar. O advogado da estudante não foi localizado.

Já quanto à manifestação, a Uesb informou que recebeu os manifestantes e criou um grupo de trabalho permanente para traçar novas estratégias de democratização de acesso da juventude quilombola, assim como a permanência desses jovens na universidade.

Autodeclaração
No início do mês, a ouvidoria da Uesc recebeu uma denúncia de que uma aluna de Direito teria cometido fraude. Ela teria afirmado que é negra, mas, para o denunciante não seria considerada como tal.

De acordo com a ouvidora, a professora Maria Luísa Santos, a denúncia recente foi encaminhada com uma foto da estudante anexada. “Aconteceu o caso da Uesb e, não sei se por tabela ou por investigação, as pessoas estão mais atentas. Encaminhamos para a Assistência Estudantil, para o Setor de Matrícula e para o próprio colegiado de Direito”. Se for comprovada a fraude, a aluna poderá ser expulsa do curso.

Para a ouvidora, o processo deve incluir um longo debate sobre a autodeclaração e como os candidatos se identificam.

Ufba não tem denúncias, mas estudante contesta
Na Universidade Federal da Bahia (Ufba), onde o estudante de Medicina Miguel Jesus, 24, cursa o 8º semestre, ainda não há nenhuma denúncia formalizada, desde que as cotas começaram, em 2005, de acordo com o pró-reitor de graduação, Penildon Silva Filho. Para o pró-reitor, isso se deve ao fato de que o processo de recebimento de matrícula é muito rigído. “São pedidos muitos documentos. Se você olhar o edital do Sisu (Sistema de Seleção Unificada), tem que trazer histórico de escola pública, para a questão étnico-racial, cada um se assume e, para a questão de renda, tem uma série de comprovantes, inclusive, a avaliação da cota por renda demora até um mês”, observou.

Mas Miguel, que é membro do coletivo Negrex, discorda das estatísticas. Segundo ele, em turmas com até 80 alunos, é comum que apenas três ou quatro estudantes sejam negros. Só que, entre as quatro modalidades de vagas que, juntas, correspondem às 50% destinadas às cotas, duas têm critério racial (para estudantes de escola pública e estudantes de escola pública com renda per capita menor que 1,5 salário mínimo).

“Se você olha na universidade e não vê essas pessoas, alguma coisa está acontecendo errado. E você vê a desproporcionalidade visivelmente clara dez  anos após a implementação do sistema de cotas”, pondera Miguel, que garante que, nos próximos meses, um dos objetivos do coletivo é se debruçar sobre os possíveis casos de fraude na instituição.

Critérios para definição provocam polêmica

O estudante de Medicina da Ufba e integrante do Negrex Miguel Jesus acredita que é preciso pensar em um modelo de cotas mais efetivo desde a seleção. “Do jeito que está, ele (o sistema) não consegue dar conta da reparação”, diz. Ele acredita que um critério fenotípico – pela aparência – poderia fazer diferença.

Em concursos públicos na Bahia, desde o mês passado, existe uma recomendação do Ministério Público do Estado (MP-BA) para que seja adotada uma verificação de traços fenotípicos que atestem a autodeclaração do candidato. O MP recomenda que sejam realizadas entrevistas presenciais abertas ao público e que os editais dos processos seletivos exijam a anexação de cópia colorida de um documento de identificação no ato da inscrição para os candidatos que quiserem concorrer às cotas.

Segundo a promotora Lívia Sant’Anna Vaz, que assina a recomendação, ela é baseada em um entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) e parte do pressuposto de que já ocorreram situações em que candidatos não negros prestaram declarações falsas para se beneficiar do sistema de cotas. “A autodeclaração não é critério absoluto de definição da pertença étnico-racial de um indivíduo, devendo, notadamente no caso da política de cotas, ser complementado por mecanismos heterônomos de verificação de autenticidade das informações declaradas”.

Contudo, o pró-reitor de graduação da Ufba, Penildon Silva Filho, discorda da adoção desse tipo de critério para as universidades. “Houve um debate muito grande, no início dos anos 2000, sobre como seriam os critérios para a definição das cotas. A UnB (Universidade de Brasília) fez mais ou menos isso. Conceberam uma comissão dos professores para avaliar se alunos eram negros ou não através de fotos. Essa experiência foi desastrosa. Demonstrou-se que não era viável, criava muitos conflitos”, lembra, citando, ainda, o caso famoso de dois irmãos gêmeos idênticos que, em 2007, foram classificados de maneira diferente pela comissão – um foi visto como branco, outro como negro.


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