Ademar Cirne | Historiador | [email protected]
Treze de maio de 1888: envolto em um conturbado cenário político interno – em face da transição do Império para a República – e diante das paralelas transformações externas ocorridas na Europa – que consolidava as estruturas capitalistas e via a Inglaterra reforçando o desejo de aumentar o número da sua mão – de – obra assalariada – o Brasil foi testemunha de um importante fato histórico, a abolição da escravidão. Leia na íntegra.
Em 2016 se comemora cento e vinte e oito anos da histórica data em que a Princesa Isabel, filha do Imperador Pedro II, assinou a Lei Áurea, que decretou o fim do secular período de escravidão no Brasil.
É desta maneira que, tradicionalmente, se propaga esta importante passagem da história brasileira nos bancos das escolas espalhadas pelo país: a abolição da escravidão como uma dádiva concedida pelos senhores e governantes por entenderem que era chegada a hora de todos sermos iguais. De acordo com o ensinamento repetido dia após dia, o ato da Princesa Isabel foi responsável por equiparar os negros libertos aos brancos, inserindo os antigos escravos no contexto social igualitário, onde não havia descriminação e racismo.
Ocorre que, diverso do quando difundido, o ato formalizado pela Princesa em 1888 apenas serviu para mascarar um contexto de sofrimento, racismo e humilhação vivenciado pelos negros por longos tempos. Muito pouco (ou quase nada) mudou na vida daqueles que por séculos foram reféns de um sistema atroz e desumano, que até os dias atuais se veem deixados em segundo plano no momento em que se discute a história do Brasil.
A campanha abolicionista, em fins do século XIX, mobilizou vastos setores da sociedade brasileira. No entanto, passado o 13 de maio de 1888, os negros foram abandonados à própria sorte, sem a realização de reformas que os integrassem socialmente. Por trás disso, havia um projeto de modernização conservadora que não tocou no regime do latifúndio e exacerbou o racismo como forma de discriminação. Gilberto Marigone 2012,
Como dito, em poucos bancos de salas de aula tem-se a oportunidade de aprender que a libertação do povo negro foi resultado de um permanente e incessante conjunto de lutas travadas contra o regime e contra os escravocratas por mais de três séculos. Muitos se esquecem (ou preferem omitir) a informação que a resistência contra a escravidão iniciava-se ainda nos navios negreiros quando muitos escravos provocam sua morte.[1] A posteriori, quando negociados pelos traficantes, a batalha reiniciava e a tentativa de fuga era imediata ainda mesmo no transporte para as senzalas, onde mais uma boa quantidade terminava morrendo.
E não é só. Muitas mulheres escravas, ceifadas de suas forças e incapazes de escapar do sistema buscavam através do aborto impedir que seus filhos fossem transformados em cativos – notadamente quando o feto era concebido contra a sua vontade. Não são poucos os casos que relatam os abusos sexuais perpetrados contra as escravas pelos Senhores de Engenho, que na maior parte das vezes possuía a compreensão clara das duas supostas funções da negra: a trabalhadora braçal durante o dia e o complemento sexual à noite. Outra forma comum de resistência à escravidão que raramente é trazida a baila é o suicídio, realizado inúmeras vezes por aqueles que preferiam escapar em definitivo do sofrimento carnal ao invés de morrer um pouco mais a cada dia, sem dignidade, força e liberdade.
Alternativa diversa de luta que foi criando espectro durante o século XVII foram as fugas dos nossos irmãos para as matas e serras distantes na tentativa de reconstrução de uma organização social semelhante as que tinham na África. Desta ideia nasceram os primeiros dos muitos quilombos que se espalham pelo Brasil ao longo de toda escravidão, atuando como verdadeiros locais de proteção e guetos propagadores das ideias de liberdade, que não demoraram a alcançar os centros urbanos. É a partir desta propagação de ideias de liberdade e igualdade que surgem instituições, como, por exemplo, as associações beneficentes e beneméritas que se agrupavam com objetivo se arrecadar fundos para compra de alforrias e cria previdências com o intuito de sustentar os negros mais velhos que mesmo livres[2] não tinha como se sustentar. Diz-se isto, poria a Alforria nunca era uma conquista solitária, uma vez que resultava de uma rede de solidariedade e esforços conjuntos dos companheiros, pais, avós, padrinhos e madrinhas que se união a fim de conceder liberdade àqueles que se encontravam presos nas malhas da escravidão.
Em 1751, na cidade do Salvador, Jerônima da Conceição, viúva, libertou Marcelino, mulato, com dois ou três anos de idade, depois de ter recebido 30 mil contos pago por seu pai, Floriano Alares Pereira. Na mesma cidade, em 1818, a Freira Maria Clara de jesus, do Convento de Santa Clara do Desterro libertou um recém – nascido depois de receber 20 mil réis pagos pela mãe da criança. Os padrinhos concorriam frequentemente com quantias para alforria dos afilhados, em fevereiro de 1871, n cidade de Porto alegre, o pequeno Ernesto, filho de Inocência e neto de Gertrudes, foi liberto após sua avó ter pago 130 mil réis a sua senhora. (Valter Fraga Filho 2006)
Neste diapasão de luta e resistência, não se pode esquecer a importância das organizações religiosas, que através dos mais velhos estruturavam e mantinham a tradição do culto aos Orixás, elemento que possibilitou a unidade e a fé que faz esse povo garantir o permanente desejo de enfrentar e resistir para manter a sua ancestralidade que vai sendo transmitida de geração a geração fortalecendo o desejo de liberdade.
Todas estas informações e circunstâncias nos remetem a um dado estatístico [3]pouco ensinado nos bancos das escolas: apenas 30% dos negros do Brasil foram beneficiados com a Lei Aurea, já que quando ela foi assinada pela Senhora Isabel cerca de 70% dos negros do Brasil já estavam livres com resultado de todas essas formas de luta que relatamos acima.
Mesmo antes da abolição formal ser assinada, os negros e negras já se utilizavam de estratégias inteligentes para garantir a sobrevivência do seu grupo social, após a abolição que estava prestes a acontecer. Uma destas estratégias pode ser vista, mais uma vez, analisando dados estatísticos encontrados nos registros dos arquivos públicos da Bahia[4]: a maior parte das alforrias que os grupos familiares negociam e compravam dos senhores e senhoras assim como as compras feitas pelas associações protetora dos negros, criadas a partir do século XIX, sempre deram prioridade aos cativos do sexo feminino, pois se entendia que libertas estas teriam seus filhos já livres o que seria importante para continuar a existência do negro no Brasil.
Diante do todo exposto, reside a pergunta: será que temos realmente algum motivo para continuar ensinado aos nossos alunos esta História que nos foi contada? Por quanto tempo esta versão positivista da História brasileira será transmitida pelos livros didáticos adotados pelo governo? O que motiva a escrita de uma história que ainda exalta o treze de maio como marco libertador do povo negro?
É de bom alvitre salientar que em nenhum momento busca-se desprezar o ato formal que pôs fim a escravidão, contudo, em face do modo como até hoje ele é encarado e, notadamente em razão da supervalorização do treze de maio de 1888, nunca é demais se questionar: 13 de maio? Para quem, meu povo?
Ademar Cirne
Graduado em História pela UFBA
Pós Graduado em História do Brasil pela PUC/MG
Coordenador Nacional de Quilombos do CEN – Coletivo de entidades Negras
Ogã do Terreiro Ilê Axé Oxumarê
Gerente da Coordenação de Promoção da Igualdade Racial de Vitória da Conquista.
[1] Em média 40% dos cativos transportados para o Brasil através da maior diáspora que o mundo moderno conheceu (cerca de 5 milhos de negros forma traficados para nossas terras), não chegavam aqui com vida.
[2] Em 1885, foi promulgada a Lei do Sexagenário que libertou todos os escravos com mais de sessenta anos.