Ezequiel Sena | Bancário | [email protected]
Quando o corpo se acostuma a despertar no silêncio da madrugada, é praticamente impossível forçar um novo sono. Se forçar, dá até dor de cabeça. O que já foi tédio quando jovem cede espaço ao prazer. Apreciar o raiar das primeiras luzes do dia no horizonte é maravilhoso. O melhor mesmo a fazer é saltar da cama, dar um basta na preguiça, preencher o tempo e deixar os olhos abrir os caminhos de um novo dia. Leia na íntegra.
São 4h55min. Na Avenida Olivia Flores já há amigos a me esperar. A pista vai se encher das vozes dos apressados madrugadores em nome da saúde. Não caminhar com essa gente falta algo, a caminhada fica sem graça, parece que o tempo se alonga. Prefiro me juntar a eles.
A turma dos chamados homens de bem não dá moleza, anda pra valer. Percorre a pista todo santo dia até o fim da curva de entrada da Uesb ¬– Universidade Estadual do Sudoeste, um percurso de quase seis quilômetros. Muito bom esse contato diário, além de fortalecer ainda mais os laços de amizade, melhora o astral.
Logo ao clarear, principia o formigueiro humano: senhores e senhoras andantes, ciclistas e velocistas de todo tipo, e lá vamos nós. De repente, aparece um grupo de belas moças, como se flutuassem pela estrada. Todas bem vestidas de malhas coloridas coladas ao corpo, a lhes cobrirem as linhas harmoniosas de cada reentrância. Parece até que as roupas foram costuradas com elas dentro, de tão desenhadas. É inevitável a nossa contemplação, com todo respeito, é claro!
Feito bobos, um olha para o outro meio sem graça, enquanto elas passam em direção ao destino bendito. Viu aí? Escuto um perguntar, como se fosse possível alguém deixar de ver tanta exuberância!
A natureza é perfeita. As bonitas carregam consigo a majestade de suas geografias naturais. Que me perdoem as feias, como bem escreveu o poetinha Vinícius. Colírio em circulação suaviza o pulsar do coração e o sangue ao latejar delicadamente faz seu giro nas veias. Não precisa dizer mais nada!
Já é dia. O sol ainda manso, não é mais como um bocejo avermelhado detrás da serra. O verde do pasto se anima a crescer, mas, em nome do progresso, vai dando lugar às novas edificações. Mais à frente avista-se os prédios do SESI/SENAI/IEL, da Justiça Federal, do Novo Fórum Estadual e do Ministério Público.
Outros caminhadores, também fugindo do sedentarismo, nos cumprimentam pelo caminho. É hora de a turma colocar o papo em dia. Uns tentam seduzir os demais parceiros a escutarem os seus comentários. Todos têm, na ponta da língua, uma visão crítica sobre o jogo do time do coração, das extravagâncias do fim de semana, das experiências vividas em seus trabalhos ou se ufanam com as conquistas do passado.
A caminhada prossegue. Lá íamos nós quando, por alguma razão que até Deus duvida, um resolve chamar o outro pelo apelido. Pra quê? A gota d’ água! O grupo inteiro cai na gargalhada. Caçoam numa chacota sem igual. Apelido é assim, vira praga, assemelha-se a erva daninha, espalha-se como água morro abaixo ou fogo morro acima. Se enfezar – coitado! –, ninguém consegue segurar, vai estar condenado ao fogo eterno. Que o Nosso Senhor tenha dó!
O homem virou uma fera! Nervoso, vermelho que nem brasa, fazia ameaças, queria brigar a todo custo. Felizmente, a turma do “deixa disso” foi chegando, e a paz voltou a reinar; resolveu-se dar um basta. Mesmo porque, naquele instante, ninguém era doido de mexer com o ofendido.
Mas que nos dá vontade de atiçar para ver o circo pegar fogo, isso dá. A língua coça e ninguém teve coragem. Ainda bem! Caminhada em grupo é assim. Como uma fenda aberta, por ela o que se vê vazio pode se encher de tudo.
Ezequiel Sena