Um dos mais intocáveis tabus do jornalismo é a abordagem do suicídio. Embora não haja alguma lei que proíba, coisa rara são leitores, ouvintes e telespectadores se depararem com notícias dando conta de um suicídio. Nesses casos, há duas saídas. A mais comum delas é usar eufemismos, como noticiar que uma pessoa caiu de um determinado andar e morreu. A outra é dizer textualmente que foi suicídio, mas de forma breve e sem quaisquer detalhes das circunstâncias, o que só ocorre quando se trata de uma pessoa pública ou famosa. Nos dois casos, a notícia é dada cheia de dedos. Leia na íntegra o artigo de Malu Fontes.
Nesse final de semana houve um suicídio no Brasil, de um tipo impossível de ser escondido ou ignorado. Não houve eufemismos nem o suicida era famoso ou algo do tipo. No entanto, não houve meio de comunicação noticioso que não tenha noticiado o suicídio de Douglas de Jesus Vieira, policial militar, 28 anos, no Rio de Janeiro. Com sua morte, um novo capítulo no que se refere à publicização de um suicídio foi escrito e uma nova narrativa do tema foi inscrita no imaginário brasileiro e internacional, pois, como saber em que ponto do mundo estavam todos que viram o episódio?
Câmeras
Douglas assumiu o roteiro, a direção e a divulgação de sua própria morte, ao escolher morrer paradoxalmente ao vivo, transmitindo o próprio suicídio, no Facebook, ao disparar uma arma contra a cabeça. Como bem disse um jornal carioca: o que antes a gente evitava mostrar, na era das redes não dá para esconder. O tabu em torno do suicídio, embora organismos internacionais registrem crescimento significativo no número de casos, hoje estimados em torno de 800 mil mortes por ano, é explicado por sugestões propostas por esses mesmos organismos, como a Organização Mundial de Saúde, a OMS. Parte-se do princípio de que o suicídio não deve ser noticiado porque esse tipo de informação tende a estimular outras pessoas com quadro de sofrimento psíquico a sentirem-se encorajadas a repetir o gesto.
Mesmo sendo objeto de dissenso nas redações, já que muitos profissionais da imprensa pensam exatamente o contrário, ou seja, defendem o princípio de que o suicídio deve ser noticiado, principalmente porque vem se tornando uma questão de saúde pública e, pelo aumento de casos, o silêncio sobre o suicídio e os suicidas ainda se mantém nos veículos de comunicação. Com o surgimento e a democratização dos dispositivos tecnológicos e dos smartphones, a população das grandes metrópoles começou a ter contato involuntariamente com o fenômeno do suicídio. Em algum lugar sempre há alguém se jogando de um edifício rumo à morte e, simultaneamente, sempre há câmeras de celular à espreita para compartilhar a tragédia com os contatos de quem filma.
Turvo
Se num primeiro momento das plataformas de interação digital os celulares começaram a rasgar o véu que escondia os suicidas da sociedade, agora a possibilidade de cada um registrar o que bem quiser e compartilhar ou até transmitir ao vivo torna infinito o limite do permitido. Se os organismos internacionais de proteção à saúde e à dignidade da pessoa consideram um risco falar de suicídio na imprensa, a partir daqui o universo tende a ficar cada vez mais turvo. Se uma notícia de suicídio pode estimular outras pessoas a quererem morrer, não percamos de vista a atração que deve ter sobre muita gente com a cabeça perturbada ver casos como o do soldado Douglas acontecerem e se repetirem.
* Malu Fontes é jornalista e professora da Facom (Ufba)