Jorge Maia | Professor e Advogado | [email protected]
Eu era menino, e não faz muito tempo, e me lembro dos momentos em que ao chegar em minha casa, vindo da escola, às vezes do futebol de rua, ou do trabalho em que eu ajudava o meu pai, um tanto esfomeado e dirigia-me para o fogão, na hora do almoço ou do jantar, destampando as panelas e beliscando o quanto ali se encontrava. Na memória auditiva ainda ouço a voz da minha mão: para de beliscar menino! Depois não almoça, ou não janta. Era assim. Uma tradição que eu mantinha com orgulho e que jamais abandonei e nem por isso perdia a fome e almoçava normalmente o mesmo volume de sempre. Eu sempre usei com equilíbrio a arte de beliscar, nunca permiti que aquela prática interferisse na minha refeição diária. Leia a íntegra.
Naturalmente a vida vai nos encaminhando por outros modos de beliscar e passamos do beliscar a comida nas panelas para outros tipos de beliscões, tão atraentes quanto aos primeiros, mas que exige a permissão de quem está sendo beliscado, se não for assim teremos problemas. Beliscar é arte que só não traz problemas para os iniciados. É preciso ter sensibilidade e capacidade de dosagem, exige-se certa vocação.
A vida também oferece os seus beliscões, esses são perigosos, e sem habilidade podemos sofrer alguns beliscos doloridos, outros muito marcantes, alguns irreparáveis, o que pode destronar o beliscador, acabando uma carreira antes considerada de sucesso, restando apenas a doce lembrança de alguns beliscões que ocupam algum lugar da memória, simples e doce recordação que dá lugar a um sorriso.
Para o beliscador a vida é dividida entre o início da prática do beliscão e o declínio dessa arte. Sim, o beliscão tem início, meio e fim. Não é algo eterno. Com o tempo a artrite impede a compressão mais forte, a pessoa perde o controle motor e o beliscão é um apático toque irrelevante e sem o charme do seu significado original. Um fracasso.
Ainda hoje, não perdi a mania de beliscar a comida na panela, mas na imaginação ouço a voz da minha mãe reclamando. O que eu ouço, em verdade, é a voz da minha mulher que reclama pelo mesmo motivo da minha mãe, mas nesse ponto sou um conservador e me mantenho um beliscador de comida na panela, sem a pretensão de desistir, aliás é a única coisa que hoje eu belisco, já não tenho a liberdade de beliscar outras coisas e nem me seria permitido fazê-lo sem que provocasse um mal estar ou um escândalo. Na minha idade, resta-me ser um beliscador de panelas, ou receber algum beliscão da vida, o que dói muito. 31072017
2 Respostas para “Jorge Maia: A arte de beliscar”
"Pedro Euvaldo Cairo Silva"
muito bom beliscador J Maia.
Adriana
“Beliscões da vida”! Realmente doem muito…