Entre a boa técnica e a má política: o “sincericídio” de Ceres

Foto: BLOG DO ANDERSON

Ernesto Marques | Jornalista | [email protected]

Em tempos de moralismo rasteiro em moda, a falsa separação entre técnica e política volta com força a cada dois anos, quando governos se sucedem após eleições, como se tal separação fosse possível na administração pública. Essa fraude conceitual serve bem aos mestres da dissimulação, quando tentam posicionar-se acima da podridão estrutural da política brasileira, só recentemente escancarada. À direita ou à esquerda, políticos eleitos para prefeituras e governos estaduais e federal já forjaram bons quadros políticos recrutados na academia ou entre servidores de carreira. De uma ou outra vertente ideológica, há bons exemplos dos que tiveram vida longa na gestão pública ou que dela tenham migrado para a militância partidária: Paulo Souto e Antônio Imbasahy foram descobertos pelo ACM original, Jorge Solla, pelo ex-prefeito e seu colega médico, Guilherme Menezes; e Fernando Haddad, pelo ex-presidente Lula. Nos últimos dias do primeiro ano da gestão do prefeito Herzem Gusmão Pereira, sua secretária da Saúde, Ceres Almeida, sinaliza futuro diferente e bem menos promissor. Leia a íntegra.

Tão logo foi confirmada para comandar um orçamento de R$ 230 milhões, Ceres foi reconhecida pela atual oposição como o melhor quadro do novo governo, justamente pelo perfil técnico: graduada em Enfermagem e Obstetrícia pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, pós-graduada em Saúde Coletiva, com ênfase em gestão de Serviços e Sistemas de Saúde (UFBA), especialista em Enfermagem Obstétrica e ainda em Auditoria de Sistemas de Saúde (informações do site da Secom-PMVC). Tanta qualificação – e a chancela do cargo de auditora – sugeria capacidade técnica de corrigir erros e melhorar processos para elevar a qualidade dos serviços ofertados à população. Mas em seu percurso acadêmico, profissional e de vida, essa servidora estadual de 51 anos de idade não compreendeu uma verdade elementar, as vezes dura, da administração pública: a técnica serve à política.

E não há como ser diferente, nem aqui, nem em qualquer parte do planeta e em momento algum da história. A qualidade da política que se serve da técnica, é outra discussão. Na área da saúde, por exemplo, há os que defendem o SUS e os que gostariam de vê-lo destruído. Com a melhor das intenções, seguramente, mas com dose descabida de ingenuidade, a atual secretária Municipal de Saúde se vinculou politicamente a um prefeito que aplaudiu o apoio de seu deputado Lúcio Vieira Lima à chamada PEC (Proposta de Emenda Constitucional) da Maldade, que congelou os investimentos públicos em setores essenciais, como a saúde, por 20 anos. Aceitou compor um governo que teve entre seus apoiadores, empresários que se opuseram ferozmente à municipalização da saúde em Vitória da Conquista em fins da década de 1990. O mesmo segmento que hoje pressiona contra a entrada da capital do Sudoeste no Consórcio Interfederativo que ora se forma para implantar uma Policlínica Regional na cidade (investimento de R$ 24 milhões para oferecer exames e procedimentos em 18 especialidades).

Uma boa técnica, respeitada pelos colegas, a enfermeira Ceres Almeida coloca a sua biografia e capacidade técnica a serviço de uma má política de saúde pública, permitindo-se usar desde o anúncio da sua escolha para o cargo. O fato de ser servidora estadual foi usado como argumento para atestar a assepsia do novo governo. O cargo de auditora foi usado para dar crédito às respostas toscas às denúncias feitas pela vereadora e ex-secretária da Saúde, Márcia Viviane, e pelo deputado federal e também ex-secretário municipal, Jorge Solla.

Tendo atrás de si uma imagem fraudada de ambulâncias do Samu 192 em estado de sucata (a foto era do blog do prefeito, feita em 2014, como revelado pelo Blog do Anderson), como fossem de janeiro de 2017, Ceres foi induzida a dizer, entre outras coisas, não ter encontrado contratos válidos para compra de medicamentos. Viviane exibiu nada menos que 283 atas de registro de preços então em vigor, 42 delas exclusivamente para compra de remédios. Cabalmente desmentida, não teve força para ir à tréplica, depois da tentativa risível de explicar o inexplicável desabastecimento das unidades de saúde sentido na pele pela população, flagrado pela imprensa e denunciado pelos parlamentares que a antecederam na gestão da pasta.

Na segunda-feira 18 de dezembro, no mesmo plenário onde foi publicamente desmentida e ao lado da mesma vereadora Márcia Viviane, e do coordenador dos Consórcios de Saúde, do governo estadual, Nelson Portela, a secretária mais uma vez se ofereceu em sacrifício. Foi justificar a injustificável resistência do prefeito à participação de Vitória da Conquista no esforço consorciado entre o governo estadual e mais de 20 municípios do Sudoeste. Mais uma vez hipotecou sua biografia e seu conhecimento técnico para sustentar uma decisão política equivocada. Disse não estar “tecnicamente informada” para decidir…

A formação de consórcios é quase tão antiga quanto o SUS e o recurso a essa possibilidade com o fim específico de implantar as policlínicas regionais foi um dos carros-chefe da campanha do então candidato Rui Costa, em 2014. Eleito governador, vem trabalhando obstinadamente com esse objetivo desde o início de seu mandato,  começando pelo convencimento dos deputados estaduais, que aprovaram lei específica para viabilizar a versão baiana da experiência bem sucedida no Ceará. O então deputado Herzem, inclusive foi convidado a conhecer o projeto em 2015 (veja aqui http://bit.ly/1PYZvOQ ).

Quem quer que estivesse na titularidade da Secretaria Municipal de Saúde do terceiro maior município baiano, referência para outros 80 municípios da Bahia e de Minas Gerais, não pode se permitir esse nível de ignorância – e aqui uso o termo sem sentido depreciativo, mas no sentido estreito, de quem ignora o assunto, como ela mesma confessou.

Isso nada tem a ver com a discutível humildade atribuída ao filósofo grego, Sócrates, na célebre frase “só sei que nada sei”. Ninguém, no lugar de Ceres Almeida, enfermeira graduada, pós-graduada e especialista em auditoria de sistemas de saúde, poderia permanecer ignorante acerca do projeto em discussão na semana em que se inaugura a quarta Policlínica Regional de Saúde.

Fora da casa eminentemente política, que é a Câmara de Vereadores, Ceres foi tecnicamente triturada entre seus iguais – especialistas, mestres e doutores – no Conselho Municipal de Saúde, na tarde de quarta-feira. Com as abstenções dela e de mais um preposto da Prefeitura, o Conselho deliberou pela entrada de Conquista no consórcio para que a população possa ser beneficiada pelos serviços da Policlínica.

O “sincericídio” na Câmara e no Conselho foi o marco da conversão de uma boa técnica numa má política, a serviço de uma Política de saúde pública que se supunha derrotada quando da conquista da gestão plena, 20 anos atrás. Pelo talento demonstrado até aqui, é difícil imaginá-la na ribalta da política partidária, disputando eleições como Paulo Souto, Imbassahy, Haddad ou Solla. Desejável é imaginar, de agora até 31 de dezembro de 2020, seu retorno, íntegro, ao seio familiar e à convivência com seus colegas de serviço público. Se Deus está no comando, que Ele a proteja, porque não há dúvida: tratar de uma pessoa de bem.

* Os artigos reproduzidos neste espaço não representam, necessariamente, a opinião do BLOG DO ANDERSON


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